José Dias Pires
SALTAR OS QUINTAIS DA RUA DOS CHÕES
O Feliciano Macedo era tio do Augusto. Ambos moravam no Bairro do Castelo. O Augusto era um garoto de onze anos que nunca tinha aberto a pasta na escola primária, até que o Zeca o convenceu que sabia escrever, com desenhos e o levou a escrever uma flor sem palavras. Depois foi fácil transportá-lo ao mundo dos alfazetados, porque o Augusto, muito legitimamente, abominava os alfabetizados da sua escola (alfabetos — os primeiros dos betos).
Depois do sobrinho Augusto ter “escrito” uma flor e correr o bairro do castelo a mostrar o seu feito, o Feliciano levou uns dias a digerir toda aquela novidade. Também ele precisava de aprender a ler e a escrever, como do pão para a boca. Principalmente depois da multa que pagara por conduzir sem carta. O sapateiro tinha a certeza que fora denunciado pelo professor que nunca lhe perdoara ter abandonado a escola da noite. Bem tentara mas, caramba, sentira-se mal aceite e, por entre os risos dos outros e o seu suor que pingava em cascata sobre as folhas que rasgava com o lápis, não tinha aprendido nem uma letra, quanto mais a ler.
Decidiu falar com o Zeca. Sem achar maneira nem encontrar oportunidade seguiu-o de longe, durante dias, da escola a casa, do café Arcádia à porta da Assembleia e, depois, de volta a casa.
Uma noite esperou-o até bem tarde na esquina do relógio.
Dentes cerrados, olhos ardentes, mão crispada no bolso abrindo e fechando o canivete de ponta e mola, esperou. As ideias zuniam como abelhas dentro da sua cabeça e picavam-no parecendo agulhas diabólicas a costurar-lhe o juízo. E se o professor o não quisesse ensinar? E se o canivete não servisse para aprender a ler e a escrever? Havia de servir, que o jovem professor tinha ensinado a dona Leonor a letra f com uma faca de cozinha e a letra p com a asa de uma panela, diziam. A noite estava fria e o suor descia-lhe da testa até aos olhos, salgado e azedo, provocando um ardor que o cegava por momentos.
Por fim o Zeca lá saiu. Nem lhe deu tempo de iniciar a marcha. Quase lhe saltou em cima, puxando do canivete de ponta e mola, que abriu. O Zeca imaginou-se assaltado e esventrado e deu um passo atrás.
«Então, isto serve?» «Serve até de mais, mas eu não tenho dinheiro comigo!» «Dinheiro?» «Claro, dinheiro!» «Mas eu não quero dinheiro! Antes pelo contrário, até estou disposto a pagar-lhe! Eu quero é saber se isto serve para aprender a ler e a escrever, como o Augusto!»
O Zeca respirou fundo e disse quase sem pensar:
«Um canivete de ponta e mola? Isso não! Isso não serve!» «Então o que é preciso, senhor professor?» «Sei lá!»
O Zeca sentia-se encurralado. Naquela semana já era a terceira pessoa que lhe pedia para ser ensinada. Tudo por causa do aparente milagre do Augusto e das promessas que fizera de ensinar tudo a todos.
Ainda mal refeito do susto, lembrou-se de uma hipótese quase impossível de concretizar no outono.
«Olhe, arranje-me, sei lá… três pirilampos e eu prometo-lhe que o ensino a ler. De borla.» «Promete?» «Claro, está prometido.» «Pirilampos?» «Três pirilampos.» «Pirilampos neste outono frio?» «Então porque não?! Semeie agora que logo os colhe!»
O Feliciano estava por todas.
«Sementes de pirilampo? Então está bem.»
O Feliciano procurou, o melhor que pôde, as sementes de pirilampo. Aproveitando os resquícios de verão que teimavam em prolongar-se outono adentro, esteve de atalaia cinco noites seguidas nos terrenos baldios que se estendiam a partir dos limites da curva da Fonte Nova. Se quisesse teria apanhado cigarras, grilos e outros insetos. Artistas ruidosos não faltavam na antecâmara do frio que adivinhava e não sentia. O pior é que de pirilampos nada! Nadinha.
Pediu ajuda para encontrar as impossíveis sementes e apenas recebeu sorrisos piedosos e a certeza que só um milagre o salvaria. Mas o feijoeiro, vendedor de todas as sementes, tinha-lhe dito que os pirilampos costumam deixar as sementes no tronco dos choupos, junto aos rios ou nos degraus dos quintais da Rua dos Chões, no início do verão. Como o verão estava passado, o Feliciano, esperançado, calcorreou quilómetros junto à Líria, ao Ocreza e ao Ponsul, procurando resquícios das sementes de pirilampo em quase todos os choupos. Nem uma! Quase todos os dias, dava notícia ao feijoeiro da sua infrutífera labuta. Já cansado de tanto o ouvir, o feijoeiro tirou-se de modas e, para o calar, ofereceu-lhe as tão apetecidas “sementes de pirilampo”.
«Isto é uma vez sem exemplo. Aqui tens várias sementes de pirilampo. Mete-as numa caixa e não te esqueças de as alimentar.»
«Com o quê?», perguntou o sapateiro. «Com rebentos de folhas de choupo.» «Agora?! Os choupos já não têm rebentos antes da primavera!» «Desenrasca-te!»
Feliciano levou as sementes. Pareciam-lhe familiares, mas cuidou que era só uma impressão motivada pela ansiedade de ter escola. Pelo caminho arranjou uma solução: «Se não posso arranjar rebentos de folhas de choupo, consigo, com certeza, arranjar umas folhinhas tenras de amoreira». Passadas algumas semanas constatou que a sua estratégia estava a dar frutos. Já se viam os corpos pequeninos dos potenciais pirilampos. Mais folhas de amoreira. Foram crescendo os animais. Contrariando as expectativas não adquiriam o brilho noturno que esperava parecendo-se cada vez mais com bichos-da-seda. Enganei-me na comida, pensou. Transformei os pirilampos em bichos-da-seda. Ou então foi o feijoeiro que se enganou.
Guardou para si este fenómeno antes que fosse a chacota do bairro e decidiu esperar pelo final da primavera. Afinal até já sabia onde podia encontrar os pirilampos nas ruas na zona antiga da cidade, no início do verão: bastava-lhe saltar os quintais da Rua dos Chões.