Maria de Lurdes Gouveia Barata
VÍCIOS E VIRTUDES
Foi René Descartes que disse: “As maiores almas são tão capazes dos maiores vícios como das maiores virtudes”, mas não vou discorrer sobre vícios (há os que são de foro físico, como o tabaco, o álcool, as drogas, há igualmente outros como o vício da inveja e da maledicência, de foro psicológico, por exemplo) e o caminho seria de explicação longa. Todavia, ninguém defende vícios, está certo, mas apenas vou tecer algumas considerações a propósito dum vício como o do tabagismo, na perspectiva do que se tem falado em Portugal sobretudo com a voz do Ministério da Saúde. Para me colocar num plano de franqueza, começo por me assumir como fumadora de há muitos anos, vinda daquela geração em que não se pensava nos malefícios do tabaco (nem se conheciam). Por isso, mais tarde, alertei os meus filhos e os jovens com quem convivi, ou convivo, para os perigos que a saúde corre e para a estupidez de vir a ter um vício dispendioso. Os meus filhos, apesar dos conselhos, foram ambos fumadores, um ainda é hoje. Racionalmente, ninguém pode defender o acto de fumar, o conhecimento progressivo dos contras foi dando luz para repudiá-lo. No entanto, o vício existe, eu continuo nessa prática, como opção tomada dentro do meu livre arbítrio.
Quando houve as primeiras proibições de fumar em certos locais para não prejudicar outros, eu concordei. Na minha própria casa respeitei sempre amigos de visita que eram prejudicados ou incomodados pelo fumo. Com alguma velhacaria, a daqueles que gostam de aborrecer, de criticar, de querer em apuros alguém que fuma (esses tais são sempre gente pura que não fuma e já escrevi uma outra crónica em 16 de Novembro de 2016 «Fumar ou não fumar», neste jornal, em que respondi a esses críticos), como se vai arranjar, etc., com displicência respondo sempre, «se há alguém que não sabe respeitar os outros, que haja regras a cumprir». Não obstante, há agora algumas regras ridículas: nas esplanadas com cobertura não se pode fumar – apoio. Nas esplanadas sem cobertura pode-se fumar. À porta dos restaurantes e cafés não se pode fumar. Porquê? Mas se houver ao lado da porta uma esplanada sem cobertura, basta o fumador deslocar-se para lá um metro ou dois – uns passinhos para o lado e já pode fumar.
Porém, o que me fez voltar a este tema foi o que considero um ATROPELO DA LIBERDADE de cada um: TORNAR COISA PROIBIDA CERTOS ESPAÇOS DE COMPRA DE TABACO. Um deles, já corrigido atabalhoadamente pelo Ministro da Saúde, é a estação de serviço das bombas de gasolina. Parece que o ministro comentava onde não se pode fumar não se vende tabaco! Fica-se a duvidar desta capacidade de raciocínio! Quem compra tabaco numa loja junto das bombas de gasolina nunca é para fumar lá, pelo que oferece de perigo! Quem compra é para levar de viagem e poder fumar em local apropriado. Quem compra tabaco num café, num restaurante ou num bar não é para fumar lá! É para fumar onde puder fazê-lo! E assim apareceu aquele homem, penso que em Junho deste ano: «se aqui na minha aldeia não há tabacarias, eu terei de deslocar-me dezoito quilómetros para adquirir tabaco!». Tive de me rir, já não me lembro qual era a localidade, e fiz este comentário: «olha que novas profissões vêm aí para quem está desempregado: ser contrabandista de tabaco e percorrer estas terras…». A que propósito há restrições nos habituais locais de venda? Só se for para prejudicar negócios. Um fumador que não queira deixar de fumar (e a opção é exclusivamente sua!) compra tabaco de qualquer maneira! Até pode abastecer-se por mais tempo e não no dia a dia.
Um Estado-Providência deve ser para dar apoio social e oferecer serviços públicos como é sua obrigação, não é para instituir o que considera bons costumes, com proibição de caminhos (como o dos locais de venda de tabaco) para ter «um Portugal limpo de tabaco até 2040». Mas será que acreditam mesmo nisto?!
A nossa vida está embaraçada perante preocupações do caos que parece ter invadido este século XXI. São as alterações climáticas (que me desculpem os que me lêem estar sempre com a obsessão desta tragédia), são os fenómenos naturais de tempestades consequentes, fenómenos que o homem não domina, mas que contribuiu para que se concretizassem, e outros como terramotos que afligem. Há uma vaga de crueldade humana nas guerras que parecem surdir das sombras profundas de entidades maléficas, assemelhando-se a narrativas de filmes de terror, uma crueldade que nos espanta de surpresa pela manifestação do que o homem exibe de pior. Assistimos a uma particular violência entre grupos restritos, familiares, ou mais alargados a comunidades. Muito haveria a dizer nesta perspectiva, sendo-nos revelado que Portugal registou 279 homicídios em 2018 e 405 em 2022. Um crescendo agressivo da relação com o outro, desrespeitando-se o que de mais precioso se tem: a vida.
Ainda assim, quero deixar uma perspectiva positiva em relação aos humanos. A parte brilhante do reverso da moeda: a força solidária que sabe revelar perante uma catástrofe, dando como exemplo o terramoto de Marrocos, que conseguiu movimentar uma força de ajuda a quem estava soterrado, esgaravatando a terra com as próprias mãos quando não havia outros meios, horas a fio, sem dormir, na aflição de salvar vidas, investindo esforço contínuo na procura de sobreviventes sob escombros. Ao mesmo assistimos com os prédios destruídos na Ucrânia. É o impulso altruísta e solidário perante o semelhante que sofre. É compadecer-se, sofrer junto com, compaixão, compassio (compassio – com + patior (sofrer) – uma capacidade de sentir o sofrimento que o outro sente e sofre. Compaixão é a piedade e a empatia em relação à tristeza e à dor do outro e desencadeia a vontade de ajudar o próximo. Não abrange só os homens, abrange também os animais. Cito Anatole France: «A compaixão é que nos torna verdadeiramente humanos e impede que nos transformemos em pedra, como os monstros de impiedade das lendas». Cito ainda Nelson Mandela: «A nossa compaixão humana liga-nos uns aos outros – não na pena e na condescendência, mas como seres humanos que aprenderam a forma de transformar o sofrimento partilhado em esperança para o futuro».
A compaixão é que nos integra no conjunto da humanidade, tornando-nos mais humanos.