Edição nº 1870 - 20 de novembro de 2024

Maria de Lurdes Gouveia Barata
TEMPO DE INCERTEZA E DE INQUIETAÇÃO, MAS COM TEIMOSA ESPERANÇA

Começo hoje com um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (do Livro Sexto, 1962), que, apesar de referenciar outro tempo vivido (basta reparar na data de publicação), suscita associações com o tempo que se vive hoje, motivando a minha escolha:

DATA
à memória d’Eustache Deschamps

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça

Iniciando com um estar disfórico pela inquietude e tristeza que o poema conduz, desprendem-se dos versos de Sophia certas evocações de ocorrências a que hoje assistimos, desencadeando incerteza e medo. Faço deste modo uma espécie de denúncia, para que fique registado e porque acredito dar voz ao que muita gente sabe, sente e fala por aí.
Começarei por referir este tempo de incerteza e preocupação no que se relaciona com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente no socorro do INEM com que sempre temos contado. As falhas são preocupantes e acuso os responsáveis, designando o principal, a Ministra da Saúde, que chega de atribuir culpas aos governantes anteriores, que no seu tempo as falhas do INEM não percorriam os canais de televisão e os jornais por causa de mortes provocadas por não chegada a tempo. O governo actual não propalava em campanha eleitoral que resolveria problemas do SNS em sessenta dias?! Acrescento algo que me tem revoltado há muito, já desde o governo anterior: as tentativas infrutíferas de contacto telefónico com serviços competentes na área saúde. Ouvi há pouco uma senhora dizer: «durante vinte minutos telefonámos continuadamente a pedir socorro do INEM e ninguém atendeu» e o doente em risco acabou por falecer. Este era um pedido urgente de socorro. Mas experimentem os que me lêem telefonar para um Centro de Saúde (não vou designá-lo). Experimentei eu e dispus de um dia para telefonar continuamente e nada! Parece que nem tinham telefone, mas chamava. Queixas semelhantes ouvi doutras pessoas que conheço. É evidente que a experiência nos ensina: quando preciso de alguma informação necessária, vou ao local.
Depois interrogo-me sobre o que está a acontecer às pessoas em termos de agressão e violência. Às vezes temos notícia de desentendimentos no trânsito. É sempre irritante e podemos ralhar com alguma zanga. O que não me parece aceitável, e deixa-me em espanto, é uma desavença de trânsito transformar-se em agressão violenta, até com armas. É recente o que se passou em Algés com a fúria de dois condutores que entraram em discussão de trânsito, trocaram murros na estrada, o que tinha o carro atrás foi à bagageira, tirou uma ferramenta e correu a partir o vidro traseiro (e havia uma criança no assento traseiro!) do carro da frente, cujo condutor já se encontrava ao volante. Este não se ficou: fez violentamente marcha atrás e bateu na frente do carro do inimigo, quando este arrumava a ferramenta. Com o deslizamento provocado pelo impacto, quase foi atropelado pelo próprio automóvel. Há outros casos, mas só pergunto: o que está a acontecer aos seres humanos que se tomam de raiva e ódio em incidentes deste tipo?!
Há ainda, neste tempo de ira, a crueza das guerras, segando a vida de quem não tem culpa, porque os detentores de poder deste modo determinaram, sem sentido de pertença à humanidade, sendo-lhes indiferente a destruição, a fome, a morte. E as crianças estão metidas nisto tudo sem um gesto, débil que seja, de compaixão. É um tempo de injustiça e de vileza.
Falando de poder e do tornar-se poderoso para provocar todos os males, instigam-se a incerteza e o medo dum perigo iminente. Que melhor exemplo que a eleição de Donald Trump como Presidente da América? É tempo de ameaça! Ainda não tomou posse e já intimida com a saída do Acordo de Paris, que pretende medidas para minorar os efeitos das alterações climáticas. Trump é um ignorante de triste figura: reafirma a sua posição de céptico sobre as alterações climáticas, diz que «não temos um problema de aquecimento global» e que a crise ambiental não passa de uma «grande fraude»! Aliás, lembro-me de no primeiro mandato afirmar que tinha nascido com um dom para a ciência, sorrindo subtilmente os cientistas que o ouviam, isto em tempos de pandemia, que tão mal geriu. Trump é um narcisista, deslumbrando-se consigo próprio, não vendo o outro – por isso é um egoísta cego. Prenuncia-se um tempo de negação para a democracia (com Trump impando de poder, quase se faz augúrio de um ditador), de negação da fraternidade, de negação do contributo para diluir desigualdades.
Quero terminar com a chamada de outro tempo que em simultâneo coabita com um tempo negativo. É um tempo de solidariedade humana, que existe nos chamados homens de Boa Vontade. Um grande exemplo dessa solidariedade concretiza-se nos milhares de voluntários que caminharam horas, com pás e utensílios de trabalho para ajudar na limpeza das cheias de Valência, que se tornou lugar trágico de morte e destruição. Ajudam limpando ruas e ajudam com mantimentos e água. É sempre uma atitude que nos faz renascer a esperança: afinal há também seres humanos que se sentem e agem como integrados que são em toda a humanidade! Afinal há quem acredite que é o amor que salva e ilumina como estrela benfazeja! E todo o firmamento fica mais cintilante! Por isso a Esperança lá está, cintilando com a sua luz. Esplende a sua chama, dando calor a mãos dadas e o tempo que se dedica a actos de amor faz perdurar o que é humano. Como a raposa disse em O Principezinho de Saint-Exupéry: Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.

20/11/2024
 

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