Elsa Ligeiro
OS TRÊS REIS DO ORIENTE
Sophia de Mello Breyner Andresen publicou, em 1962, um livro de Contos.
Poeta com obra publicada e reconhecida, Sophia decidiu que era através do conto que melhor chegaria ao coração dos leitores e que mais facilmente eles entenderiam o seu discurso de justiça e liberdade.
Em Portugal vivíamos tempo difíceis, sem liberdade cívica e num atavismo prepotente, apenas acompanhados pelo franquismo em Espanha, numa Europa em desenvolvimento económico após a libertação do fascismo hitleriano.
Oito contos de cidadania ativa que se iniciam com “O Jantar do Bispo”, parábola com a personagem de um Mefistófeles à portuguesa; encarnando o poder económico e político num só; dialogando com uma igreja de joelhos, pronta a vender a dignidade e a justiça social de um padre, verdadeiro missionário do evangelho, a troco da requalificação do tecto da Igreja de Nossa Senhora da Esperança.
A “Viagem”, é todo ele um conto existencial de grande poder literário, revelando a pouca importância do caminho já percorrido quando a esperança é a única bagagem para se chegar aonde nos esperam (como na famosa frase de Saramago); em contraste com o “Retrato de Mónica”, todo ele em redor dos bens materiais, onde um casamento de conveniência assegura o poder social que Sophia deve ter conhecido bem nesses anos sessenta do século vinte.
Nos contos “Praia” e “Homero” é a Granja, estância balnear da infância e juventude de Sophia que aparece como poesia no seu estado natural. A figura de Búzio onde se reconhece Homero, vagabundo cuja riqueza distribui livremente através do seu canto; e esse Clube de Verão à beira mar plantado, onde os burgueses mais esclarecidos escutam clandestinamente a BBC e as façanhas dos heróis que combatem o fascismo na Europa, e Sophia nos fala claramente do que distingue os revoltados dos resignados.
Em “O Homem”, é a cidade do Porto no seu cinzento frio de inverno e essa figura tão próxima de Cristo, abandonado por todos. Até pelos que estarão sempre prontos a recebê-lo no presépio.
Todos contos exemplares, título do livro que os acolhe e que Sophia reconhece dever a Miguel de Cervantes e às suas “Novelas Exemplares”.
O livro encerra com o grande texto em prosa na obra de Sophia “Os Três Reis do Oriente”; encontrando nas personagens de Gaspar, Melchior e Baltazar a reflexão da história da humanidade com as suas glórias e misérias.
Sophia utiliza cada um dos Reis Magos para refletir sobre a Justiça, a solidariedade, e esse mistério que é a poesia.
Gaspar, Melchior e Baltazar são soberanos em reinos prósperos no Oriente. Deviam ser felizes e disfrutar da sua condição invejável. Mas cada um à sua maneira é vítima da inquietação, da pergunta inevitável que cada ser humano traz dentro de si. A vida é só isto? Comer, beber e celebrar?
A voz da consciência faz a cada um deles a pergunta incómoda: A Vida é só isto? É bom lembrar que antes de Sophia tratar este assunto já Raul Brandão o tinha feito no seu “Húmus”, Livro da Interrogação por excelência da Literatura Portuguesa.
Sophia imagina Gaspar a recusar-se a seguir a multidão que adora o seu bezerro de ouro. E por isso sofre como Job todas as calamidades; por intuir que um verdadeiro deus não se deixa adorar com ouro ou prendas. Para quem não segue o que todos os outros fazem, só lhe resta o tempo da solidão. Gaspar sofre-a, e é nesse lugar de recolhimento que lhe chega uma resposta: “Que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?” E a seguir a visão da estrela que o faz empreender a Viagem.
Melchior é um rei culto, mas, como é natural, quanto mais se sabe mais a falta de conhecimento é um incómodo.
Ora, há no seu reino uma placa de argila, velha e gasta pelo tempo que ele não sabe traduzir. Por isso chama os sábios para que a iluminem com as suas palavras. Um atrás de outro, cada um com a sua interpretação histórica de modos de tempo; até chegar a vez de Ken-Hur que revela: “O texto que temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser tomado como uma metáfora que não se refere nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperança”. E Amer, outro sábio, vai mais longe: “Num poema não devemos buscar o sentido, pois o poema é ele próprio o seu próprio sentido…” e mais à frente, ainda Amer: “O poema não significa, o poema cria”, e foi para seguir a estrela que o levará à Poesia que Melchior deixou o seu palácio.
Baltasar era um rei rodeado de riqueza e de festividades diárias.
Porém, uma noite, o som de uma flauta tocada por um escravo fê-lo cair na melancolia e pensar: “Será possível que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira de um banquete?”, e foi com essa pergunta no espírito que abandonou a fortaleza do seu palácio e encontrou a fome estampada no rosto de outros homens; e o fez duvidar da sua condição de rei. E então quis distribuir por todos os pobres do seu reino o trigo que abundava no celeiro real. Ministros e conselheiros não deixaram, com uma lógica implacável: “Seria o fim do nosso reino!”.
Triste por nada poder contra a evidência dos conselheiros, Baltasar subiu melancólico ao terraço do seu palácio e viu a estrela: “Deslizava em silêncio. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria sem falha, a substância imortal da alegria”.
E Baltasar pôs-se a caminho.