Valter Lemos
ANDA UMA NÉVOA A PAIRAR…
As primeiras décadas do século XXI não têm sido promissoras relativamente ao futuro da condição humana.
Os sinais de retração são evidentes em quase todos as áreas sociais. Na política o crescimento de movimentos de extrema-direita é claro e não parece estar contido. Na Europa, mãe dos estados liberais, a expansão é continuada, em alguns países são mesmo maioritários e até governam. E alguns são países com grandes tradições liberais e social-democratas, identificados na segunda metade do século XX como exemplos de liderança no campo dos direitos humanos e do progresso social.
Na grande pátria moderna do liberalismo, os Estados Unidos, são postos em causa, por grande número de americanos, alguns dos fundamentos e símbolos dos mais de 200 anos de história dos EUA, incluindo as instituições fundadoras e até a própria (quase sagrada) constituição! E este ataque à nação liberal americana é feito com argumentos pretensamente nacionalistas…
Esta onda de ataque à democracia liberal estendeu-se a outros grandes países como o Brasil, e tem vindo a difundir uma onda política pretensamente nacionalista, antiliberal e tendencialmente autoritária, mas, acima de tudo, muito obscurantista.
O seu principal instrumento é a difusão da mentira. O seu grande inimigo é o conhecimento e a ciência. A ciência detém esse grande poder de se ter afirmado como o triunfo da razão humana sobre as crenças e os mitos. A ciência exige prova e demonstração e a aplicação de pensamento critico. A crença só exige ignorância e preguiça mental para acreditar sem questionamento ou demonstração.
Vivemos, pois, um novo ciclo crescimento da ignorância e do obscurantismo, terreno fértil para a disseminação de crenças e mitos e desvalorização do conhecimento e da ciência.
Mas não deixa de ser surpreendente que isto esteja a suceder após o século da democratização e universalização da escola, em que a escolarização média da população cresceu exponencialmente em todo o mundo, havendo países que passaram de níveis residuais para a escolarização total. Em Portugal na segunda metade do século XX a escolarização, incluindo acesso e duração, mais do que triplicou, havendo indicadores com crescimentos acumulados de mais de mil por cento.
Assim, não podemos deixar de questionar como é possível após o século em que a escolarização, a ciência e a tecnologia cresceram mais do que em toda a história da humanidade, apareça um tempo de renovação do poder da crença e de expansão da ignorância e do obscurantismo.
Duvida-se mesmo que os pretensos argumentos, obscuros e mesmo tresloucados, sobre nacionalismos, emigração, clima, criminalidade e outros que vemos, ouvimos e lemos, possam vir de pessoas escolarizadas e socialmente integradas. Mas é isso que acontece.
Os sinais ainda que visíveis na política, não se limitam à mesma. A rejeição das alterações climáticas, a pulsão censória na literatura, no cinema e nas artes, o revisionismo histórico, a relativização comunicativa do valor da ciência e da racionalidade, a legitimação do uso mentira objetiva como instrumento de comunicação e de política (como exemplo podemos citar o Polígrafo SIC que revelou que André Ventura já mentiu mais de 100 vezes em declarações públicas, desde 2019), o que nos leva a questionar porque é que os eleitores são tão críticos da mentira ocasional de alguns políticos, mas aceitam e provavelmente até acreditam quando usada de forma sistemática por outros. Dá vontade de dizer que só pode ser pura estupidez, mas é capaz de ser mais do que isso.
O regresso do puritanismo na comunicação social, no cinema e na sociedade em geral é outro sinal do regresso do obscurantismo. A cedência da moda à maior cobertura do corpo, o quase desaparecimento do uso de saias ou camisas mais curtas, a manifesta regressão das cenas de sexo mais óbvias no cinema, a permanente vigilância puritana das redes sociais, sobre os níveis de nudez que figuras públicas das artes do espetáculo apresentam ou podem apresentar, etc. Os exemplos são inúmeros e, muitas vezes, só temos consciência clara quando comparamos obras, imagens e textos dos anos 80 e 90 do século XX, com os atuais, mostrando que há hoje uma espécie de ambiente puritano de autocensura em marcha.
Da política às artes, da comunicação social à ciência, parece pairar no ar uma certa neblina que nos quer impedir de ver com clareza, fazendo com que muitos duvidem do que sabem e troquem o seu saber pelas crenças dos outros.