Edição nº 1853 - 17 de julho de 2024

Lopes Marcelo
MESTRE DE VIDA

Perante a circunstância triste do falecimento recente do Mestre Manuel Cargaleiro, assumo em forma de testemunho pessoal trazer a público o que constituiu para mim uma das experiências mais gratificantes: o ter conhecido de perto a sua grandeza como ser humano, expressão de simplicidade, disponibilidade e bondade.
No início dos anos de noventa do século passado, há mais de três décadas, o então Presidente da Câmara municipal de Vila Velha de Ródão, o saudoso Inspector Batista Martins organizara no edifício inactivo de uma Escola primária uma residência artística para jovens pintores, que encerrou com um dia de ensinamentos e de convívio com o consagrado Mestre.
A convite do Presidente estive presente. O conhecimento pessoal, a proximidade com a sua postura de diálogo simples e tão natural, a forma descomplexada e amiga como o Mestre falava com os jovens pintores, o seu interesse genuíno por tudo o que dizia respeito à nossa região na emotiva vibração das suas raízes; marcou-me indelevelmente. Ao saber que eu estava a ultimar um livro sobre a Beira Baixa, manifestou grande interesse e apoio que foi expressando em várias circunstâncias.
A circunstância seguinte aconteceu em Paris pouco tempo depois. Com efeito, acompanhei o Arquitecto José Manuel Castanheira, consagrado cenógrafo, na sua exposição de composições cenográficas de várias peças de teatro no Centro Cultural George Pompidou, um notável evento cultural que envolveu a presença da comunidade portuguesa, com o nosso Embaixador e um conjunto significativo de grandes artistas portugueses residentes em Paris, designadamente Júlio Pomar e Manuel Cargaleiro. Por sua iniciativa, no seu diálogo amigo surpreendeu-me com o convite para que o visitasse no seu atelier na Boulevar Raspail. Indicou-me o código de acesso e ficou combinado para o dia seguinte. Em sobressalto cultural lá me dirigi ao belo edifício de cinco andares, com o último todo ocupado com o seu extraordinário atelier. Durante várias horas de diálogo mostrou-se interessado em saber notícias da nossa região, sobre o andamento do meu livro e, sobretudo, falou em diálogo sincero da sua terra natal, da sensibilidade e cultura de sua mãe, dos primeiros tempos difíceis em Paris, das suas múltiplas obras, circulando por entre telas pincéis e catálogos das suas inúmeras exposições. Referiu com enfase a sua vontade de trazer para o nosso país grande parte da sua obra, estando a equacionar duas hipóteses, uma em Lisboa e a outra em Almada onde tinha raízes sua mulher. Contudo, num desabafo, concluiu: o que eu gostava mesmo é que fosse mais próximo da minha terra, quem sabe na nossa região, em Castelo Branco. Fiquei sem palavras. É provável que tenha sido uma das primeiras pessoas que lhe ouviu tão íntimo desejo e generoso projecto.
Alguns anos mais tarde, na circunstância da apresentação do meu livro Beira Baixa – A Memória e o Olhar na Cidade Universitária de Paris, Casa de Portugal, novo contacto com o Mestre e de novo surgiu o convite para o visitar no seu atelier. Desta vez, acompanhou-me o Professor Fernando Raposo, voltando a ser uma oportunidade especial de diálogo e franco convívio. Destes contactos nasceu um profícuo relacionamento cultural do Mestre com o Instituto Politécnico de Castelo Branco que possibilitou a realização de uma notável exposição de quadros de Arpad Szenes/Vieira da Silva na nossa cidade, marco significativo do então movimento da Cultura Politécnica.
Acredito que dos múltiplos contactos e evolutivo relacionamento do Mestre com as instituições albicastrenses, designadamente a Câmara Municipal, resultou a progressiva concretização do desejado Museu Cargaleiro em Castelo Branco nas suas várias valências, designadamente da cerâmica que ainda está em organização. Formulo votos no sentido de que muito rapidamente, também nesta vertente, as suas obras e a excepcional colecção reunida ao longo da sua longa vida, possam integrar o seu dinâmico Museu.
Manuel Cargaleiro foi um enorme artista fiel às suas raízes no Chão das Servas (Vila Velha de Ródão). Cidadão ilustre do mundo, sempre expressou a vibração da sua identidade cultural coerente com o território de origem. Contudo, foi a sua dimensão humana de simplicidade, generosa disponibilidade e manifesta bondade que o torna ainda mais singular e notável no mosaico dos grandes artistas nossos contemporâneos. Homem frontal, lutador, de corajosa sinceridade e serena bondade, constitui um exemplo, uma bandeira para todos nós, quer no campo da reflexão pessoal, quer no campo colectivo.

17/07/2024
 

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