Valter Lemos
VIVE LA FRANCE
A França é um país que tem a singularidade de nos surpreender a cada momento da história. Ainda recentemente aqui escrevi, a propósito das eleições francesas, que a França parecia estar a fugir de si própria, dos seus valores liberais e humanistas, seguindo a tendência obscurantista que se tem espalhado pela América e pela Europa. A segunda volta dessas eleições foi, no entanto e desde logo, uma boa surpresa. A França mostrou que pode continuar a surpreender-nos e parou essa fuga.
A recente cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos constituiu mais um pequeno surpreendente momento dessa história. Muito tem sido dito sobre isso, mas o simples facto de ter deixado a extrema-direita e o conservadorismo autoritário com os cabelos em pé é, por si só, uma medalha para os organizadores, para a França e para o pensamento humanista e liberal. Uma festa da liberdade e da modernidade. Foi assim que a França mostrou estes Jogos Olímpicos. A reação do conservadorismo autoritário e do fascismo mostrou-se bem na bestialidade histérica das redes sociais com as habituais técnicas de tentativa de falsificação da realidade. A história da chamada “ceia” é de rir às lágrimas, pela ignorância revelada. Esses conservadores pseudocristãos nem sequer sabem, afinal, quanto apóstolos estavam na última ceia. Bendita ignorância! E bendita estupidez de muitos que engolem, sem qualquer sentido crítico, tais alarvidades.
Num mundo e num tempo em que o obscurantismo conservador e autoritário parece ter ganho força, a França veio reafirmar, através da celebração da paz que inspira a manifestação olímpica, que o desenvolvimento da humanidade moderna assenta nos princípios liberais e humanistas proclamados com a sua revolução. São a liberdade, a igualdade e a fraternidade que nos trouxeram aqui.
As primeiras décadas do século XXI, nomeadamente a partir da crise financeira de 2008/9 têm sido tempos de regressão, ao contrário das últimas décadas do século XX que foram tempos de progresso. O autoritarismo político e social renasceu, o nacionalismo, a intolerância religiosa e social expandiu-se, as guerras intensificaram-se, a glorificação da estupidez, da ignorância e da crendice ocupou o espaço das redes sociais e até, em grande parte, o espaço mediático. Resta perceber se este caminho vai continuar a ser trilhado na América e na Europa ou se esta mancha escura começa a regredir.
Os sinais são contraditórios. As eleições europeias deram um sinal positivo. O crescimento da extrema-direita parece finalmente ter parado e também da extrema esquerda putinista e antidemocrática. Também a situação americana parece mostrar algumas razões de otimismo com a candidatura de Kamala Harris. Sabemos que a vitória de Trump constituiria uma tragédia para a Europa e para o mundo. Porque ele é o que parece. Aldrabão, mal-educado, misógino, egoísta, narcisista, ignorante e mal-intencionado.
Estamos, pois, num momento fulcral da história. Há um claro embate político e civilizacional entre duas culturas. A da liberdade e a da servidão. A da democracia e a da autocracia, a do conhecimento e a da ignorância, a da razão e a da crença.
A França é uma das principais fontes históricas da liberdade, da democracia, do conhecimento e da razão. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos relembrou-nos isso mesmo. Tinha dito que ver a França a fugir das suas origens é um espetáculo pouco agradável e agora direi que ver a França a relembrar e afirmar as suas origens é um espetáculo fantástico!
Vive la France!