José Dias Pires
JUSANTE, MONTANTE E A TRILOGIA DO VIVER AMARGURADO
Ultimamente, lidos os jornais locais e outros, os nossos sorrisos inconvictos soam a deleite e a amargura, a introito de vitória e a prelúdio da derrota, e isso não é admissível entre aquelas que hão de, um dia, governar o Império Verdadeiramente Desgraçado do Riso Espirrado se um dia tiverem bem esclarecido nas suas cabeças a diferença entre montante e jusante. Grandes tempos nos estão prometidos se conseguirmos promover e incentivar, junto dos que hoje falam da implicação dessas duas palavras no nosso território e como elas podem determinar a trilogia do viver amargurado e a dualidade incomum dos familiares inimigos.
Chegou-me às mãos um documento que, presumo, há de um dia ser arquivado por quem definir claramente a importância futura do que nos acontecer a jusante se tivermos percebido o que passou a montante. Ou será o contrário?
É seu autor um tal Rrauff quando ainda era o temido Alfa Alfa da Alcateia Mor.
E começava assim:
«Ouvi bem! Transformai estas palavras em memória oral que será passada entre todas as nossas potenciais companhias que, por não destrinçarem se a questão fundamental da nossa vida é a rentrée a jusante ou reentrada a montante, ainda vivem clandestinas e disfarçadas de criaturas mansas que, sem serem peixes, dependem da água e vivem, assim amarguradas no medo de a perder.
Sabei pois que é na noite preta, quando acontece a lua nova, que se descobre a trilogia do viver amargurado. O seu primeiro elemento são as amizades. Nós, os lobos, sabemos que apenas existem dois tipos de amizades e ambos nos são desfavoráveis: o que nos é oferecido pelos amigos da trela, os humanos, revestido de um aparente carinho em nos tomar como companhia, nas suas casas e das suas coisas, através de sorrisos compartilhados que são a véspera dos desassossegos futuros: um olhar mais penetrante que o nosso; um esgar mais cínico e raivoso que o nosso esgar; uma dentada que, mesmo não se sentindo na carne, magoa bem mais que a nossa e que se chama oferta irrecusável, favor irrepetível ou benesse de comprometimento. Nós, com tantas facilidades, ficámos hipnotizados e transformámo-nos, primeiro, em cães de fila e, depois, em cães de trela. Perdemos a razão e ganhamos a ração; é-nos permitido o uivo em condições muito especiais mas já não em todas as luas novas e, muito menos, nos penedios mais altos dos montes superiores.
Um outro tipo de amizade, não menos doloroso, e ainda mais gravoso, é a amizade dos que, dentro das nossas alcateias, se invejam, enganam e traem mutuamente, pensando que assim se fortalecem. Sorriem amizades com sorrisos falsos, porque são suaves e quase melodiosos. É neles que reside a amizade da treta: das promessas convenientes; dos boatos secretos ciciados; das denúncias anónimas e das confissões aparentemente sinceras, mas cínicas.
Nós, julgando que é na concentração das divisões que se ganha poder, perdemos a força e a nobreza, e facilmente nos deixamos acomodar no engano do pastoreio dos rebanhos de outros, fingindo de pequenos reis, quando afinal quem manda é o cajado e o assobio do pastor.
Os interesses são o segundo elemento da amargurada trilogia do viver.
Nós, os lobos, andamos, cada vez mais, sem um rumo definido: no recato das nossas casas tentamos imitar os humanos andando a duas patas apenas para nos sentirmos mais altos, quando, afinal, ficamos mais indefesos, incapazes do salto que sempre nos caracterizou como senhores da serra. Alguns, até ensaiamos ao espelho o esgar imberbe, com a língua de fora, dos cães da comida seca e da companhia hipócrita. Estamos a perder o brilho penetrante do nosso olhar porque seguimos a moda dos óculos escuros que escondem a coragem, as verdades e os remorsos que os olhos sem barreiras sempre revelaram. Estas escolhas erradas estão a levar-nos a pisar os fragmentos de promessas espalhados pelo chão e os vestígios das impossibilidades originadas pelas nossas cobardias.
Por fim, o terceiro elemento da vivida trilogia da amargura: o ciúme.
Como as raposas, temos passado os últimos anos perdidos, inquietos e a deixar que nos roa por dentro o pior dos sentimentos, mais forte que a amizade ou a camaradagem e só comparável ao amor: o ciúme.
De dominadores passamos a dominados: temos ciúme do vento que já não desalinha o nosso pelo; temos ciúme do sol, da lua e de todas as constelações, porque já não exercem sobre nós o fascínio da liberdade e da autonomia; temos ciúme das pequenas ondas dos regatos onde saciávamos a sede: já nem nos lembramos das curvas e desníveis dos seus leitos, desde que fomos aliciados com o favor da água com nome próprio de barragem e feitio enganador de lagoa; temos ciúmes dos pássaros que, pela madrugada, deixam os ninhos para distribuir melodias por onde passam, enquanto nós, lobos acomodados, transformámos os nossos covis em grutas apalaçadas, e os nossos uivos cantados em enrouquecidas repetições de conveniência nos salões.
O pior é que o ciúme dói nos artelhos, na raiz dos pelos e gela-nos a sola das patas; faz com que os nossos músculos fiquem moles e limpa-nos as paredes do estômago como uma lixa; é uma dor real que vai da flor da pele ao interior do esqueleto.
O ciúme não se satisfaz em nos transformar em cães conformados: faz de nós canitos babosos, babados e incapazes. Tão incapazes, que ficamos sem saber como distinguir e enfrentar a histórica dualidade incomum que nos marca desde tempos ancestrais: o que antigamente eram inimigos de bem parecer — os linces — estão agora transformados em inimigos de conveniência — os gatos; os velhos inimigos de mal querer, que tanto nos incomodaram nas serranias — as carraças — são agora substituídas pelas pulgas incómodas que vivem nas enxergas, onde nos deixámos acomodar, para nos sugar o sangue.
Nós, que fomos os senhores das serranias, estamos, aos poucos, a transformar-nos nos conformados canídeos aparentemente silvestres e facilmente domesticáveis.
Ouviram bem? A nossa tarefa é promover a inevitabilidade da trilogia do viver amargurado e a dualidade incomum dos inimigos junto dos lobos mais fáceis de influenciar: os elementos das Brigadas Sapadoras da Desgraça do Corpo dos Obrigados Defensores e das chefias da Matilha dos Cães de Fila. O resto virá por acréscimo. Vá, passem a palavra, usem, a partir da sombra, as ofertas irrecusáveis, os favores irrepetíveis, as benesses de comprometimento, as promessas convenientes, os boatos secretos ciciados, as denúncias anónimas e as confissões aparentemente sinceras. Resolvam, por uma vez a questão primacial da trilogia do viver amargurado. A jusante ou a montante, venceremos!»
Assim escreveu Rrauff quando ainda era o temido Alfa Alfa da Alcateia Mor.