8 de março de 2017

José Dias Pires
MÁSCARAS

No frontão do templo de Apolo em Delfos, está a expressão, atribuída a Sócrates de”Conhece-te a ti mesmo” -  “Nosce te ipsum”.
A recomendação, conjugada com o mandamento shakes-peariano de sermos fiéis a nós mesmos, impõe a dura tarefa matinal de olhar o espelho e perguntar:
- Será que os outros me veem como sou, ou eu sou como me veem os outros?
A dificuldade não está em saber como nos veem os outros. Lê-se nos seus olhares. Difícil é descobrir quem somos. E o espelho é apenas a projeção da nossa imagem.
Em tempo de Carnaval as coisas ficam, por princípio, mais facilitadas.
Quem não é poder, durante três dias, rompe com a mascarada anual, e brinca a sério. Quase todos os que se mascaram assumem-se para ser como são, e não para imaginar como os outros os veem. Pequenos poderes de Carnaval: durante três dias, em bailes e desfiles, passam a viver na efémera ilusão da verdade.
Chamando a tudo isto alienação coletiva, os tecnocratas arrumam fatos, gravatas, óculos de sol, suspensórios e, despenteados, saem à rua mascarados com calças de ganga e t-shirt, sem se importar que lhes chamem subdesenvolvidos em vias de desenvolvimento.
Eu mascarei-me, sem máscara, de contador de fábulas:
Quando a minhoca e a sanguessuga trocaram de máscaras
Não suportando mais viver dos seus anéis, no Carnaval,a minhoca saiu do seu buraco, decidida a ser feliz, ao menos, por um dia.
Ansiando a troca de papéis, que podia, talvez, mudar-lhe a vida, propôs-se, à luz do sol, buscar a alegria. Serpenteando, chegou ao pântano lamacento onde, à espera de um distraído mergulho, vivia a sanguessuga, em desespero.
- Prima, trago para si um novo alento capaz de refrescar-lhe o orgulho e terminar com o seu jejum, sem exagero! Troque comigo de menu e de lugar e vá deliciar-se com o doce sangue das raízes que eu faço, por si, o resto da dieta.
O verme aceitou procurar, nos confins da terra, outros matizes que, na seiva das plantas, a fome aquieta. Tranquila, a minhoca, ficou expectante, no posto que a sua prima possuía, à espera da vinda de alguém de sangue quente.
Chegou ao lamaçal um domingueiro mascarado de pescador. Confiava preencher, com peixe, a mochila vazia porque sabia estar ali petisco diferente.
Lesto, armou o mais moderno instrumental capaz de pescar, até, atuns no lodo. Em poucos minutos encheu de peixe o seu bornal, sem ter sequer que recorrer ao engodo.
Espantada, a minhoca observava aquele ser em calções que ia ser a sua fonte, o alimento, a sua afirmação. E assim, desajeitada, trepou pela perna vazia até chegar à fronteira do calção.
Incomodado, o pescador, notou o movimento e, sacudiu a perna. O isco caiu no chão, e ele colocou logo na ponta do anzol.
Os peixes, pela agitação do novo alimento, lançaram-se ao petisco, aumentando, ao pescador, o apetecido rol. Perante a inusitada pescaria, o pescador saltou, antecipando a festa, e fez soçobrar o areal da margem.
Nos túneis da minhoca, a sanguessuga via os tetos a desabar, antes de provar a seiva ou retomar a aragem.
Enfim, quem, por rastejar, está destinado a uma tranquila redundância, na troca de máscaras não pode presumir mudar, por mimetismo, a sua dimensão, pois está, queira ou não, sempre confinado a não ser mais que, na sua circunstância, a reduzida pequenez cujo devir é viver rasteiro e junto ao chão.
Quem se mascara sabe que não pode representar impunemente um transitório papel. Por detrás da máscara há sempre algo que nos diz que nem tudo o que fazemos nos diz respeito. Contudo, sentimo-nos tão bem escondidos! Sim, porque para quem participa no Carnaval, a alienação é o resto do ano, embora se saiba, a contragosto, que hãode retomar-se as outras máscaras na quarta-feira de cinzas.
A mim, por me mascarar de contador de fábulas, apenas me resta pedir desculpa a La Fontaine pelo desaforo.

08/03/2017
 

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