Guilherme D'Oliveira Martins
SOB AS LUZES DE ALCIPE
Maria Teresa Horta, sendo uma mulher de causas, usou a sua escrita determinada e belíssima em prol dos direitos fundamentais e da dignidade humana. Sendo co-autora das “Novas Cartas Portuguesas” tornou-se, com inteira justiça, um dos símbolos da liberdade em Portugal. Na celebração dos cinquenta anos da Revolução dos Cravos foi com orgulho que ouvimos do Presidente da República de França reconhecimento da importância da literatura como forma de combate pela liberdade cidadã e por uma cultura de igual consideração e respeito por todos. É uma das grandes referências da literatura portuguesa contemporânea. Pessoalmente tive o gosto de trabalhar na área da Educação com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa – e essa saudade das três Marias não se desvanece. A escrita de Maria Teresa é marcante pela ligação permanente entre a sensibilidade e a coragem, entre o amor e a determinação. Tive o gosto e a honra de lhe exprimir a minha admiração e homenagem numa cerimónia inesquecível na Universidade de Lisboa ou quando nos fomos despedir no Palácio Fronteira do seu primo e meu amigo Fernando de Mascarenhas, o marquês de Fronteira. E recordo hoje a sua obra-prima “As Luzes de Leonor”.
Um dia, sua mãe chamou-a à salinha onde recebia as amigas e ouvia música e apontou para um livro que estava sobre a mesinha baixa, e disse-lhe assinalando «uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: “Esta mulher é a tua avó e foi uma grande poetisa”. Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida». É Maria Teresa quem o diz. A mulher fascinante era Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna. E eu abro o meu volume do romance extraordinário As Luzes de Leonor e leio a dedicatória da autora: “… este livro de poetas e anjos, mas sobretudo da maravilhosa Leonor de Almeida…” E é com profunda saudade que recordo essas palavras e quem as escreveu, que resumem duzentos anos de lembranças. E oiço: “Sou tua espia / Sou tua neta / Tua vigia // Sou tua asa / Sou tua guia / Tua passagem //Crio-te a fresta / Abro-te a porta / Teço-te a aura” (in Poemas para Leonor, 2012). Numa obra apaixonante, vasta e plural, lemos o livro segundo o conselho da autora, pela história dos Távoras ou pela história de Leonor, que esteve em reclusão no Convento de S. Félix de Chelas durante dezoito anos, “pela suprema vontade de um déspota” que determinou a sua existência, pois ao condenar à morte os avós Távora, ao prender o pai nas masmorras da Junqueira e “ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino”. E as palavras fluem naturalmente. “Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes, a visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, veem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior…” Deparamo-nos com o cego destino e o fanatismo que o domina, mas Leonor cultiva as Luzes e ama a liberdade. Lê Rousseau, Voltaire, Pope, Locke e Leibniz. Todos eles levam a questionar a autoridade do poder despótico, no qual “todo o sistema de educação se dirige ao temor e à vileza”. E Leonor confessa a seu pai: “Eu não acredito no destino, a vida é aquela que nós traçamos por decisão própria e nossa vontade”. E que melhor modo de exprimir o que vai na alma senão a poesia? Francisco Manuel do Nascimento lê o que Leonor escreve: “Li teus versos, Alcipe, e quando os lia / Bem cri que com a História conversava”. E a resposta não se faz esperar, batizando Alcipe seu interlocutor de Elísio, nome que ele junta a Filinto. Leonor sente a força do sentimento, mas no ambiente conventual torna-se “perigosa no querer passar para além do seu limite”, - “alma nunca aplacada , gémea da tempestade, torvelinho e desacerto, novelo de muita água”. A poesia e o pensamento entusiasmam-na. Maria Teresa Horta segue com intensidade e amor os caminhos de Leonor e põe na sua boca as palavras que sente. “Não gosto, não consinto, não aceito: o negrume, a obediência cega. O torpor, a ignorância, o perdimento”. Terminado o pesadelo de Pombal, Leonor torna-se admirada na Corte e D. Maria I trá-la para junto de si. Casada com o conde de Oeynhausen, consegue para o marido a Embaixada em Viena, iniciando uma vida intensa e agitada. E seguindo-a Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra-prima e um autorretrato sublime, pleno de audácia e inconformismo.