Lopes Marcelo
A TRADIÇÃO RESISTE?
As tradições nas suas características genuínas, pelos seus valores nas representações e celebrações populares da memória colectiva, pela vibração das vivências comunitárias em autenticidade dos saberes usos e costumes locais; são expressão cultural do engenho e arte das gentes e a base da identidade cultural das nossas terras. Na medida em que as tradições são originais e autênticas, resistindo no essencial embora adaptando-se às circunstâncias nos aspectos secundários, chegaram aos nossos dias. Contudo, quando as agressões partem de quem tem a obrigação, os meios, o poder e a responsabilidades para intervir defendendo e promovendo em princípio como é da competência e missão das Autarquias mas, ao contrário, na prática, se actua desvirtuando e agredindo a identidade cultural; então pode e deve perguntar-se: as tradições resistem?
Continuando a abordar a realidade do meu Concelho de Penamacor, na sequência da reflexão e denúncia constante no Mosaico do passado mês de Janeiro que intitulei - MADEIRO PIMBA? - voltei em Fevereiro a caracterizar para memória futura a tradição das Janeiras com a natural evolução recente na minha Freguesia de Aranhas para o evento festivo genuinamente designado por AINDA AGORA AQUI CHEGUEI /e já puz o pé na escada… primeiro verso do cantar das Janeiras, integrando o ramo do enchido tradicional mas que, entretanto, derrapou para a designação de FESTA DAS VARAS DO FUMEIRO. De facto, a celebração popular das Janeiras neste evento com características comunitárias genuínas, nasceu pela afirmação do património local envolvendo toda a população num movimento de partilha de saberes e sabores, abrindo as casas aos visitantes, com destaque para as lojas com os produtos locais expostos e à venda, alguns ali mesmo artesanalmente trabalhados numa animada convivência de festa comunitária. De facto, nas mais típicas ruas da aldeia acendem-se no terceiro fim de semana de Janeiro pequenas fogueiras onde são preparadas as refeições tradicionais com destaque para a sopa da matança, a chanfana, o ensopado de borrego e de javali, o arroz doce e é assado nas brasas o enchido. As ruas enchem-se de calor e animação musical com destaque para as concertinas e as gaitas de foles. Podem ser observadas actividade tradicionais como o tear da tecedeira TI Ludovina Geraldes e o forno colectivo tradicional. Nas actividades culturais centradas no património e nos artistas naturais de Aranhas, o destaque começou por ir para o Cancioneiro Local, o Festival de Folclore e o ramo da Varas do Fumeiro com a leitura da Carta de Feira Franca e Mercado Rural.
Tudo nasceu pela liderança do então Presidente da Junta de Freguesia e responsável pelo Rancho Folclórico - António Geraldes, contando com a notável acção do também Aranhense Hugo Landeiro Domingues que, como designer, deu a sua notável colaboração nos materiais gráficos criando e fixando de forma coerente a marca genuína da identidade cultural do evento. Atendendo a que infelizmente partiu muito precocemente, pois faleceu em 2021, presto-lhe sentida homenagem.
Enaltecendo a vertente da exposição e venda directa dos produtos de artesanato local, dei a minha colaboração na escrita da referida Carta de Feira Franca e Mercado Rural para ser proclamada no adro da Igreja a todo público, residentes e visitantes, a anteceder o leilão das Varas do enchido. Partindo das referências históricas da origem da povoação e à sua evolução até ter sido constituída em Freguesia no século XIX, destaca-se esta Festa e Feira das Tradições destinada a valorizar o sentimento de pertença, no reforço das raízes, dos usos e costumes, das danças e cantares enraizados nas gentes de Aranhas e tão genuinamente interpretados pelo nosso Rancho Folclórico.
Contudo, o que se tem verificado nos últimos anos, com especial incidência no passado mês de Janeiro, é que são cada vez mais as componentes exteriores à cultura local, designadamente o concerto da artista de música pimba Rosinha, bem como a deturpação da leitura pública da Carta em caricatura cómica por um grupo apalhaçado de mau gosto e postura anedótica que comprometeu a mensagem de identidade cultural da comunidade. Tudo isto tem a marca da ligeireza e até leviandade cultural da Junta de Freguesia tutelada pela organização do evento assumida pela Câmara Municipal de Penamacor. Oxalá a programação futura seja revertida assegurando a autenticidade original do património cultural local. Como referi a propósito da questionável oportunidade do concerto de Quim Barreiros no último Madeiro de Penamacor; artistas pimpas não faltam, mas existem responsáveis a quem falta o bom senso e permitem a inversão dos valores culturais.