José Dias Pires
INVERNOS/INFERNOS
Não quero perder as memórias do mar azul, a água infinita; o norte e o sul de todos os olhos capazes de olhar fechados; o sentir do toque das margens da cortiça que são o conforto das árvores; o sossego de dormir com as notas indefinidas do arrulho das pombas, o cantar dos galos, o gritar dos faisões; o apetite de ouvir o que me canta o bandolim do beija-flor e o que me dança o acordeão das cigarras: as semibreves sempre a sorrir para dentro de mim; a vontade de sonhar o que as janelas escancaradas me oferecem: as cantatas das paisagens, os entrechos musicais do pôr do sol, as tintas coloridas das palavras gritadas pelas crianças e o ressuscitar das formas simplesmente belas dos desamores juvenis; o voo sibilado das andorinhas e as paisagens sonoras dos gestos banais que, apesar disso, têm aroma de vida.
Não me quero perder nos lugares sem nome, nas cidades cinzentas, na volúpia das pressas caladas e nos empurrões dos relógios que nos obrigam a saltar de ponteiro em ponteiro.
Este é o testamento de alguém que ama a arte que pinta as palavras e que escreve as pinturas através das emoções e dos sentimentos: a música.
Foi a música que me ensinou a não presumir ser artista, mas sim um artífice que descobre a arte que não é a imitação das coisas físicas, nem o transbordar simplista dos sentimentos mais poderosos, antes a intuitiva, pensada, imaginada e sensual interpretação do que é real, sem definições pomposas.
Desculpem, hoje apetecem-me (apenas?) quatro poemas quase nada musicais:
A TRANSPARÊNCIA DO INVERNO
Na transparência do espelho,
no desejo outro,
por antecipação,
amamos a paisagem
que nunca seremos
e a ausência
do que fomos.
Há um momento em que a fome,
a descarada fome da abundância,
dos outros,
entra nas cidades
sem bater à porta da ágora.
E então,
na sombra dos silêncios da grande praça,
as palavras,
que toda a vida sobraram,
brotam lambuzadas de bem hajas,
e de insistências, a fingir-se novas de tão velhas:
farturas.
A PRESSA INFERNAL
Depressa a graça se cansa do cão
que não ladra nem caça o tempo
que (não) passa depressa.
Dizem que os peixes velhos
preferem o engodo ao isco.
Por causa dos dentes,
parece,
ou da falta deles.
Ao engodo podem sorvê-lo,
e é o último banquete.
O isco é sempre uma dentada
que se oferece à morte,
num petisco do cão
que não ladra nem caça o tempo
que (afinal) passa depressa.
INESPERADO INVERNO
Naquelas dunas,
sempre o inesperado corpo
dos gatos
e da mulher,
até se acabar a vontade
entre a procura e a espera.
Mergulhada fica
e, sem falar, assim se fica,
para sempre,
e desespera.
Apenas, augusta, desatina:
tanto a vender
(ao apoucado amor do desamado ser)
para manter
(o desalmado amor de tanto amar e ser).
Apenas? Diz a traição.
Distração, dizem as penas.
ÍNTIMOS PERTENCES INV(F)ERNAIS
Feitas as contas,
quem fica em pó
de pé
ao pé do pó,
não cai,
apenas adormece:
o pó no pó
que fica ao pé do pé
que pisa o pó que cai
vencido depois de vencer,
em pé,
o vencedor de pó.
Há uma segunda pele
que se usa como aviso
e não como adereço.
A coberto das mãos,
sem impressões digitais,
mas impressionantemente frias,
as decisões das luvas
podem mudar a vida
e moldar as vidas.
Depois o balanço,
o desequilíbrio
entre a ternura da teimosia
e o tempo da travessia.
Parece fácil?
Um homem sem tempo
é como uma fina melodia:
as frases a sair porta fora
até se (a)perceber
que a canção é sempre a mesma.
Parece fácil.
Acreditas
que a melancolia
antecipa a melodia
que evita a nostalgia
que reedita o dia-a-dia
que hesita?
Acredita.
Afinal
são íntimos os pertences
do vencedor do pó.
Palavras do velho Grama, o cego colecionador de gramofones, vetusto membro da Comuna dos Cegos Leitores — do romance Oxímoro: Um Piano de Letras e o Silêncio da Luz