Maria de Lurdes Gouveia Barata
O GRITO
Começo a escrever e… pois é, lembro que estamos em Outubro, o primeiro mês do último trimestre de 2025! E tenho de acrescentar o ponto de exclamação, tomo consciência da corrida dos dias, estamos no Outono e breve, breve estamos no Natal e no Inverno. Vem-me logo à lembrança o verso de Torga «É o cavalo do tempo a galopar…» no poema «Apocalipse» que fala do tempo. Na verdade, é apocalíptica a sua passagem. Na voz do poeta é «Um relâmpago a rasgar / O céu dum pesadelo», acrescentando na 3ª e última estância: «Besta infernal, / Com asas de morcego / E raiva desbocada», designação que se enleia no título do poema.
Todavia, deixando esta perspectiva de tempo, volto-me para uma outra, a de época: estamos no Outono, que desbota mais os verdes, amarelece as folhas, que começarão em breve a tecer tapetes que fazem frufrus sob os nossos passos e rodopiarão em dança interminável nos braços do vento. Logo associo ao poema «Dança do Vento» de Afonso Lopes Vieira, de que faço um extracto dos primeiros versos: «O vento é bom bailador, / Baila, baila e assobia. / baila, baila e rodopia / E tudo baila em redor. / E diz às flores, bailando: / - Bailai comigo, bailai! / E elas, curvadas, arfando, / Começam, débeis, bailando. / E suas folhas, tombando, / Uma se esfolha, outra cai. /E o vento as deixa, abalando, / E lá vai!... / (…)».
Ainda não temos o tempo amável duma frescura doce, está quente, os primeiros dias do mês colaram-se a perto dos 30º, mas as ondas de calor sufocante deste Verão penso que desapareceram. Há noites frias e há vento em certos momentos, geralmente de manhã e à noite. Mas eis um Outubro que é passagem de ciclos de vida, de saberes populares plasmados em ditados e provérbios. Há dois que rememoro e parecem contraditórios inicialmente: «Em Outubro, pega tudo» e «Outubro seca tudo». Depende sobretudo do tempo climático: se o mês trouxer as primeiras chuvas, a terra fica preparada para a fertilidade do que se plantar; se houver falta de chuva, não haverá resultado positivo na actividade agrícola. Daí que venha a oscilação: o que está maduro será colhido, o que se projecta para o futuro poderá realizar o sonho da renovação ou poderá transformar-se em insucesso. Vamos ver o que nos proporciona a irregularidade climática, agora mais agressiva devido à agressão humana.
Passeei pela Natureza outonal de Outubro, mas não estou sozinha com essa Natureza, porque há um mundo humano de que faço parte e, por isso, essa agressão humana atira-me para uma realidade que, a nível mundial, ninguém esquece. Não são apenas as alterações climáticas, mas as guerras entre os povos. O mundo está agitado e desencadeia em nós a revolta pelo genocídio em Gaza do hediondo Netanyahu e pela crueldade e atrevimento de Putin e pela instabilidade que Trump instaurou em praticamente todos os cantos do planeta que habitamos. Se Outubro tem datas a assinalar como o 5 de Outubro pela implantação da República em Portugal no ano de 1910, sendo também o 5 de Outubro o Dia Mundial do Professor, efeméride a distinguir, sei que o 10 de Outubro celebra o Dia Mundial da Saúde Mental (instituído em 1992 pela Federação Mundial de Saúde Mental) - há outras datas importantes, mas centrei-me nesta com a esperança de que o Donald tome conhecimento por se chamar a atenção para casos como o seu. Os outros dois nomes que citei podem considerar-se igualmente como abrangidos por problemas de saúde mental que a barbaridade e o alheamento do sofrimento do outro ratificam.
O mundo humano adoece pela crueldade, pela agressão ou pela indiferença. Lembro a propósito um poema - «Demissão» - de José Saramago (in Os Poemas Possíveis): «Este mundo não presta, venha outro. / Já por tempo de mais aqui andamos / A fingir de razões suficientes. / Sejamos cães do cão: sabemos tudo / De morder os mais fracos, se mandamos, / E de lamber as mãos, se dependentes».
A culpabilização de um nós todos, que teríamos o dever de mudar as circunstâncias, esbarra, porém, numa incapacidade perante o poder que se afigura dominante pela força. No entanto, temos ainda o outro poder: o do grito, que é a denúncia, o enfrentamento, levando a efeito a acção possível. Acredita-se que as palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade (Victor Hugo). É o grito! Assim, invoco uma das minhas pinturas preferidas: O Grito do norueguês Edvard Munch, que se tornou um símbolo da angústia, da dor e do medo humanos. Há quatro versões da mesma pintura, sendo a de 1893 a que se tornou famosa, representando uma das mais importantes do movimento expressionista. Foi inspirada por uma experiência pessoal, quando o pintor caminhava por Oslo e sentiu ansiedade ao observar o céu que se tingia de vermelho e teve a sugestão de ouvir um grito da Natureza. Cores intensas de vermelho sangue gritam igualmente no cenário por detrás dum esboço de figura humana com a boca em O e as mãos agarrando lateralmente a cabeça, todos os elementos concatenando uma circunstância de terror. Há quem interprete que é a angústia humana perante o mundo caótico. Considero uma pintura que desce fundo na nossa emoção. É obra de grande valor comercial e foi roubada em Agosto de 2004 – ainda não apareceu!
É pelo grito que se faz confronto ao que aflige, sejam manifestações que agitam os países em prol da Palestina, seja o que se testemunha e divulga, tornando-se esse grito palavra de revolta e desespero e a palavra ganha força – por causa das palavras enchem-se prisões de ditadores e faz-se tortura e usam-se armas de morte. A propósito, cito um poema de José Jorge Letria, «Meditação sobre os Poderes» (in Quem com ferro ama):
Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.
Mas termino com um pensamento de Simone de Beauvoir: «Em todas as lágrimas há uma esperança».