Antonieta Garcia
Vindimas e bons vinhos
Vindimam agora, mulheres e homens alguns vergados, como vimes, as mãos a ser água, doces, a afagar as uvas... E cantam, cantam, cantam durezas, desaires e regalos, claro.
Neste húmus habitam cantigas de amor e de maldizer que se soltam de vidas de intensidade misteriosa. Irmãos da terra, entre a alvorada e o crepúsculo, demandam um sonho… sabe-se lá qual.
Um Setembro, de cores quentes, matiza imagens maternais e lava os olhos nas folhas vermelhas, grenás, castanhas, amarelas…
Na quietude outonal, em céu camponês, uvas maduras mordidas bago a bago, a espuma do vinho prometido… embriagam de ardor, de luz. O cheiro do mosto enobrece a arte de amar, os jovens a transfigurar-se em Ovídio: “Quem rouba um beijo e não rouba o resto merece perder os favores prometidos”. Ouvem-se:
Estou debaixo da latada,
Nem à sombra, nem ao sol;
Estou ao pé do meu amor,
Não há regalo maior.
A paixão e a alegria andam ao léu e inspiram a delicadeza do sentimento que estimula e convida ao carpe diem. São jovens e soletram excessos e sonhos de alvoradas sem medida nem razão. Sabem os cantos de vivências divinas, alongam os olhos pelos campos… que o sol nunca mais chega à mágica Pedra de Hera mensageira do meio-dia solar e da pausa...
Ganapos traquinas engordam com a fruta que cai para o outro lado do muro terra de ninguém.
O cansaço só repousa à tardinha, quando um ar fresco varre o balcão e voltam às casas rangem tempos antigos e rumores amigos.
Não são raras as ousadias, como não faltam ciúmes e arrufos que geram rompimentos, alheamento, menosprezo a raiar o insulto:
Não se me dá que vindimem
Vinhas que eu já vindimei.
Não se me dá que outros logrem
Amores que eu rejeitei.
Às vezes, o desalento cria queixumes, e desprendem desabafos de quem é obrigado a transmigrar, em busca de pão, e… ainda assim, canta. As lides ficam menos duras.
Fui um ano à vindima
Pagaram-me a trinta réis.
Dei um vintém ao barqueiro,
Vim p’ra casa com dez réis.
Tarefa acabada, inicia-se a produção de vinho, objetivo essencial da colheita de uvas. E neste ano da graça de 2014, os deuses regatearam a quantidade, mas cumpliciaram-se com a qualidade, dizem. Bebida para celebração de cerimónias laicas e sagradas, dizia Napoleão que “Nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário”.
Apura artes e artimanhas desde Noé, talvez o primeiro, conta a lenda, a plantar uma vinha; obra de truz, o Diabo fez das suas. Pediu informações, sem se identificar, e Noé, ingénuo, explicou que plantava uns frutos que cresceriam em cachos; maduros comer-se-iam ao natural, podiam usar-se secos, docinhos. Espremendo as uvas preparava-se uma bebida excelente capaz de alegrar os homens. O diabo teceu-as. Ofereceu-se para sócio de Noé. E a rega? Diabólico, sacrifica quatro animais: o cordeiro, o leão, o macaco e o porco. O sangue serviria para orvalhar a plantação.
O resultado não podia ser mais claro: toda a pessoa que se embriaga tem reações parecidas às de um destes animais. Com pouco vinho fica dócil como um cordeiro; mais uns copos e sente-se forte como um leão; transfigura-se em macaco, quando bebe demais; muito ébrio torna-se um porco repugnante.
Saber beber é uma arte. Conhecido o segredo, que direção vale? Beber moderadamente bom vinho.
Vindimam, agora, mulheres e homens, as uvas que Baco, sempre excessivo, aprendeu a espremer e que espalhou, em festa, pelo mundo. Tivesse razão Montesquieu e a crise estaria ultrapassada. Dizia o filósofo: “Dai-lhes bons vinhos e eles vos darão boas leis”. Os vinhos portugueses aprimoraram-se. Alguns recebem medalhas. Num país tão bonito, tão rico de gentes e saberes… quem sabe, um calicezinho?.. Despediam o barqueiro das moedas e, cá para mim, as leis sairiam mais atiladas…