“S. FIEL REVISITADO”
Domingo de Maio a rebentar de sol e quietude. Um chamamento a que nunca resisto dar guarida põe-me, de novo, a revisitar o polo apaziguador de mágoas e nostalgias.
A destoar de tanta Natureza prenhe de cio, ao meu redor, só a materialidade fria do carro em que escrevo. Descanso demoradamente o olhar como a abelha se fixa, inerte, sedenta do néctar. O pensamento, esse dilui-se por entre flashes de um passado pulverizado. Tarde, ou cedo, tudo o que fomos e somos se esvai na hora marcada. Apenas fica o que deixámos, se é que deixámos. E tudo o que de físico e material compôs o cenário de uma vida breve, mais breve que o eclipse total dos sonhos aureolados, permanecerá estático e imperturbável a atestar a efemeridade da existência humana - as casas de granito sólido e intemporal onde gerações incontáveis nasceram, fizeram filhos e se finaram; os plátanos imemoriais da altura do meu desassossego nos quais a foice sinistra das autarquias ainda não poisou; os caminhos poeirentos onde se cruzaram carroças e carros de varais, de rodas a chiar, movidos à força bruta de bois meigos e pachorrentos, carregados até ao cimo de lenha no inverno e uvas maduras e milho loiro, no verão; os muros seculares que outrora garantiram a integridade de um antiquíssimo colégio de Jesuítas, e hoje garantem, derrubados, a invasão e o saque do que resta de um património atirado ao abandono da incúria política de um Ministério da Justiça; a água que desce, pressurosa, as faldas da mãe-Gardunha para generosamente dessedentar nos fontenários gente distraída; a Senhora de Fátima que do alto de um pedestal granítico, conformada na indiferença de quem passa, envolve as populações num olhar transcendental onde a mágoa e a tristeza se confundem com a serenidade e o perdão - tudo, tudo - é a exaltação de uma Natureza resiliente perpetuamente obstinada no afã único de criar para dar. E de mão aberta. E a troco de nada!
Ao olhar para trás, quisera ter sabido venerá-la, ontem, da mesma forma que hoje a idolatro. Mas como ser imperfeito que sou, apenas a idade madura me traz consciência daquilo a que não dei atenção e só por si me compensa o fardo de existir e resistir. E nada de metafísico há nisto. Nada de transcendências religiosas assenta nisto. Muito menos a inquietação da busca existencial. Apenas o sortilégio da contemplação (para quem disso for capaz) de tudo quanto envolve o ser humano e lhe dá gratuitamente sustento e vida. Tudo o mais fica por alcançar. Tudo o mais permanece no turbilhão frenético e inútil da pesquisa. Tudo o mais fica na ânsia frustrada da conquista. Porque ao Homem, refém de subalternidades que a Natureza impôs, será sempre vedado invadir a esfera enigmática que esconde o mistério da criação e do transformismo, esse tabernáculo ciosamente trancado, mesmo às teorias mais aprofundadas da exaurida exploração teológica. Dimensões do Impenetrável! Galáxias do Insondável! “... Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, mas porque a amo, e amo-a por isso ...” (Alberto Caeiro).