Carlos Semedo
UMA BOLA E UM RECTÂNGULO
Há uns tempos atrás escrevi um pequeno texto sobre a minha relação recente com o futebol. É um tema avassalador no espaço público e é muito difícil passar ao lado do mesmo.
“Muitos sabem que eu sou sportinguista. Já deixei a fase “doente” há muito tempo, mas vibro com as vitórias e não gosto quando a coisa corre mal. Creio que o trabalho de Bruno Carvalho e sua equipa tem muitos lados positivos. Nas modalidades antigamente chamadas amadoras, voltámos a ser uma potência nacional e no futebol, temos crescido.
Não tenho experiência de vida suficiente para conseguir perceber a dimensão do assédio que resulta de ser presidente de um clube com milhões de adeptos, num país com três jornais desportivos (que, creio, são 90% de futebol) e uma boa parte da comunicação social dependente do sangue e das lágrimas. Contudo, já vivi o suficiente para ter bem claras as fronteiras entre a firmeza, convicções sólidas e o egotismo descontrolado. No caso de Bruno de Carvalho, infelizmente, o pendor é claro. Dou-lhe os parabéns, pelo que já construiu no Sporting, mas admito que tenho vergonha das suas verbalizações (há uns dias afirmou uma coisa do género durmo com os três olhos fechados, uma tirada cheia de nível). Para se ter um ego do tamanho que ele tem, precisaria de compensar com uma atitude comunicacional exemplar. Digo isto sem qualquer moralismo ou necessidade de politicamente correcto. Gostaria simplesmente que ele tivesse noção de que quando fala, fá-lo por um universo alargado de pessoas e não para o seu círculo restrito de amizades, com as quais pode usar a linguagem que bem entender. Pelo Sporting é que não admito.”
Na sequência da publicação e de algumas conversas por ela motivadas, cada vez me convenço mais que o futebol parece pertencer a um domínio próximo da suspensão da personalidade do indivíduo. Há quem se refira a este fenómeno como o prolongamento histórico do que se passava nos Coliseus romanos e haverá um pouco de razão nessa asserção. Durante aqueles 90 minutos tudo, ou quase, se parece apagar em termos de equilíbrio, discernimento e lucidez. Falo, obviamente, dos comportamentos, da linguagem usada, dos lugares comuns repetidos até à exaustão e, muitas vezes, da violência. Adicionalmente, como o futebol ocupa esse espaço desmesurado no quotidiano de tanta gente, muitas vezes, os noventa minutos estendem-se por horas e dias, criando um contínuo de suspensão, motivando uma verdadeira confusão. Há “amigos” que deixam de o ser por causa do futebol, outros zangam-se durante dias e encontramos fenómenos tribais que parecem brincadeira, mas que se transformam, muitas vezes, numa realidade feia.
O futebol é um jogo, como centenas de outros jogos: envolve pessoas, clubes, paixões, em suma a natureza humana, no que tem de pior, melhor e na sua relatividade e matizes. Acontece que foi transformado em algo que gera, para além de milhões, uma necessidade de atenção quase absolutista. Os milhões e o absoluto estão ligados, bem como a contínua sofreguidão de gerar heróis, estrelas, números um, aumentando dramaticamente a leitura dicotómica do sucesso/falhanço. Ora, esta coisa de pensarmos que há o número um e, a partir daí, todos pertencem ao grupo dos últimos, é uma das maiores falácias, com consequências altamente nefastas em termos de sanidade mental.
Uma das coisas que pode ajudar na evolução deste estado suspensivo é o cidadão conhecer em profundidade outras modalidades desportivas. Há muitas que, pelas suas características técnicas são muito mais indutoras do respeito mútuo e valorização da diversidade. Uma vitória não é o esmagamento do outro e uma derrota está longe de ser o fim seja do que for. Todo o caminho para se chegar ali, ao momento decisivo, é o mais importante. Esta é, sobretudo, uma questão cultural.