Maria de Lurdes Gouveia Barata
SIRGO DE ANTÓNIO SALVADO
(…)
Sedia la fremosa seu sirgo lavrando.
sa voz manselinha fremoso cantando
cantigas d’ amigo.
(…)
(Estevão Coelho)
A famosa cantiga d’ amigo do poeta medieval Estevão Coelho (que transcrevo em epígrafe) imediatamente me veio à memória quando deparei com o título do novo livro de António Salvado – Sirgo. Caiu bem no meu gosto de leitora e várias considerações me enredaram em coisas de escrita, particularmente da escrita deste poeta que há muito elegi nas minhas preferências. O poeta continua sempre lavrando o seu sirgo, feito de palavras na simultaneidade do próprio canto. Sirgo é uma colectânea de obras de António Salvado, esgotadas (que deixaram de estar esgotadas…), catorze títulos vindos a público entre 1959 e 2014 – Recôndito, Estranha Condição, Interior à Luz, Amada Vida e Outros Poemas, Des Codificações, Matéria de Inquietação, Vtere Felix, Nausicaa, O Prodígio, Estórias na Arte, Rosas de Pesto, Quase Pautas, O Sol de Psara, Treze Odes Latinas. Sublinhe-se que há muitas mais obras publicadas entre as duas datas referidas, mas foram estas catorze as seleccionadas pela causa aduzida. É um pedaço do sirgo de António Salvado que vem de novo às mãos dos leitores. Um pedaço desse canto que se torna marco contra a morte. Tal como o amor - «Uma palavra parte a procurar / amor na praça larga da ternura» («Viagem Vida», Estranha Condição, p.83).
É no Canto que fica tatuada a andança de peregrino na Terra, na vida. Neste cantar fica um registo de ser homem na teimosia de viver e lutar, no apreço pela existência, cumprindo-se. Sempre em espera, imbuído de esperança. É uma linha de força do canto, destacada na produção poética de António Salvado. Muitos outros motivos podemos encontrar, mas opto pela do homem, do ser e do existir numa abrangência da travessia (nestes catorze títulos e na obra em geral). Embora a espera possa, numa primeira abordagem, inserir-se num quadro de passividade, não deixa de ajustar-se positivamente à vida: quem é desistente, por exemplo, nada espera. Na poesia salvadiana surge a espera com equivalência a esperança num processo de luta no viver - «De espera se constrói a nossa vida» (poema inaugural de Amada Vida, p. 163). No poema homónimo de Estranha Condição (p.104) o homem teima na espera apesar da inflexibilidade do tempo na sua passagem voraz e vem a morte («vela apagada») e o homem com «a febre enorme que se perde em febre» na teimosia de continuar. Apesar da decadência e da vida que se esvai, há sempre «o anelo de subir entre cascalho».
«Lugar de Estar…» (Vtere Felix, p.321) traz-nos a dimensão do grande Lugar, a Terra – e são vários os lugares de vivência, marcados na infância, marcados no quotidiano, na Beira, na raia, no campo, na casa, na lareira, em volta da mesa, no jardim, na rua, lugares em que se misturam o viver interior e o viver exterior – e há a transferência para o ser e o existir, para a reflexão sobre a Vida e o seu mistério, para o amor, sempre, o amor por essa vida, que se particulariza frequentemente num eu-tu, há a distância longe que concede outros espaços perto, amados e engastados no ser. O tempo implacável, interrogado, mas apaixonante - «A vida: beijo do tempo» («Pinheiros», Matéria de Inquietação, p.280) - é tecelão do canto, abrangente dum microcosmo que se projecta num macrocosmo. «O sonho casa da vida» é um verso («E quando tudo…», Matéria de Inquietação, p.259) que polariza o ser e o existir.
A cantiga de amigo que escolhi para epígrafe é dialogada. O poeta dirige-se à donzela: «Par Deus de cruz, dona, sei [eu] que andades / d’ amor mui coitada, que tam bem cantades / cantigas d’ amigo» // -Avuitor comestes, que adivinhades!» - vai retorquir a donzela. Não precisará o leitor de comer carne de abutre (que dava capacidade de adivinhação) para descobrir na poesia de António Salvado o amor pela vida que emerge da sua palavra poética. E o Poeta continua o seu sirgo lavrando…