9 de outubro de 2019

José Dias Pires
DEPOIS DO BOSQUE QUEIMADO, A LENGALENGA DO SUSTO, A TEORIA DA FRESCURA E O OBSERVATÓRIO DO FOGO

Para a Celinha, uma amiguinha muito querida que esteve na manifestação do dia 27 de setembro e não disse disparates como uma senhora mais velha que se aproveitou da malta nova para descarregar a bilis (ele há cada emplastro nesta vida…)

Podia chamar-se de muitas outras formas mas eu quero chamar-lhe como lhe chamavas antes do incêndio: Bosque da Alegria. Sabes, uma das aves que o habitavam, a rola, ficou muito queimada e andou muito tempo envolvida por ligaduras. Mesmo depois de curada continuou enrolada porque se transformou numa múmia que assustava, com uma terrível lengalenga, os incendiários e os distraídos que tentassem destruir o novo Bosque da Alegria, se algum dia o voltasse a ser. Era a Rola Enrolada — a Múmia Sustopia, e é assim a sua Lengalenga do Susto:
«Quem te disse? Sim, quem te disse? Quem te contou? Diz lá, quem te contou que o Bosque da Alegria é o lugar que te resta para uma bela festa com luz e calor de noite e de dia? Quem te contou? Quem te disse? Foi a cinza ou foi o fogo? Fogo forte ou cinza quente? Ou será quem aqui veio, indiferente, deixar lixo, sem cuidado, para depois, ao ser queimado com as plantas que por cá havia, atacou quem cá morava e acabou com a alegria, porque em menos de uma hora tudo ficou feito em nada com a cor acinzentada do pó quente e calcinado sem presente nem passado.
Sei que a ti nada te assusta. Pois não te assustes, chega-te a mim, anda cá! Vou transformar as tuas unhas mal cortadas numas pontas de dedo engraçadas: serão cabeças de fósforo! Vem! Chega-te a mim, anda cá! Não te assustes, comigo não há segredos: em cada um dos teus dedos, se os mexes sem saber o que pode acontecer, agora que os transformei em fósforos que ardem bem, tu vais ter fogo, vais sim! E também te vais queimar como me queimaram a mim!
Não tenhas medo, anda cá! Anda, chega-te a mim, vá. Queres acender uma fogueira? Então vem, que arranjo maneira. Para onde te vou levar, bem longe deste lugar, vais ser fogo internacional, ganhar fama mundial, só que não vais poder queimar cores como aqui havia no Bosque da Alegria.
Vem, anda, vamos voar bem lá para cima, fazer um incêndio colossal no lugar mais especial: o vulcão de Sakurajima!
Onde fica tal vulcão?
Não sabes, mas vou dizer-te antes que possas perder-te e voltar de novo aqui.
Está ali, à tua espera, numa ilha do Japão.»
Uma das aves sobreviventes foi Mo Cho, o conselheiro das penas e professor de ecologia. Todos o ouvem atentos. Os seus ensinamentos são oferecidos antes de chegar o sono e ficam para acompanhar quem, depois de o ouvir, lhe apetece sonhar com a Teoria da Frescura, que é assim: Não há nada melhor que a manhã fresca, a tarde amena e a noite fria. As três acendem a alegria dentro de casa no fogo de uma lareira até ficar apagada num sono de cinza. A frescura da manhã perdura ao longo do dia à medida que a aurora, perfumada, se evapora. A frescura dá alento ao voo da borboleta, ao mergulho carinhoso de uma abelha sobre a flor, e dá ânimo redobrado a qualquer pássaro cantor. A frescura está no sabor dos frutos, no aroma dos sumos e alegra o paladar dos homens.
Sabendo o que está em jogo, a frescura tem todas as cores menos uma: a da melancolia que é a cor sem cor que fica depois do fogo.
Também o Secreto — um corvo disfarçado de garça — se salvou do fogo destruidor e ficou encarregue de, secretamente, ajudar a descobrir os incendiários pois tinha uma arma infalível: o Observatório do Fogo.
Aqui fica, para que se possa utilizar noutros bosques, o Observatório do Fogo:
1 — A quem encontrares a correr no sentido oposto a um incêndio recém-começado, com um ar afogueado, mas não de susto, e nas mãos ou na cara esteja meio chamuscado como se viesse de um magusto, pergunta-lhe assim de seguida:
«Quem és tu? De onde vens? Para onde vais? Que barulho é esse, de madeira pequenina, que faz o teu bolso?»
Se a resposta for: «Não tens nada com isso!» Fica desconfiado e não deixes nunca mais de o ter bem vigiado.
2 — Se encontrares alguém com um sorriso rasgado a olhar um incêndio televisionado, diz-lhe assim sem o deixares responder:
«Olha ali, olha ali! Aquele que ali vai a correr, sem olhar para trás, não és tu? És tu mesmo, pois és, não há que enganar!»
Se ele fugir dali a sete pés, já sabes o que tens de fazer: é correr sem parar até alguém o agarrar.
3 — Se encontrares alguém a olhar para um fogo e a dizer entre dentes «Já estou vingado ou já o vinguei». Já sabes: ou foi quem mandou ou foi o mandado.
4 — Lembra-te sempre do que te vou dizer: na natureza só a uma coisa não se pode perder. Se perderes um fogo, procura o fumo e encontrarás o seu caminho. Se perderes a água, procura a humidade que a água, por certo, estará perto.
Mas tem cuidado: nunca percas a confiança, porque esta uma vez perdida é um deserto e dificilmente se volta a encontrar.
5 — Aprende a confiar em quem diz:
«Gosto da luminosidade do dia, da cor do lume, mas sei respeitar a escuridão da noite iluminada pela luz fria da lua ou pelo calor guardado nos candeeiros.»
«Gosto tanto de água, mas não quero ser bombeiro, por isso não desejo aprender a lidar com o fogo.»
«Adoro estar ao sol e mais ainda: poder refrescar-me, sem medo, na sombra de um arvoredo.»

09/10/2019
 

Outros Artigos

Em Agenda

 
07/03 a 31/05
Memórias e Vivências do SentirMuseu Municipal de Penamacor
12/04 a 24/05
Florestas entre TraçosGaleria Castra Leuca Arte Contemporânea, Castelo Branco
14/04 a 31/05
Profissões de todos os temposJunta de Freguesia de Oleiros Amieira

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video