Antonieta Garcia
MEMÓRIAS - CLARA HENRIQUES DE LARA (INQUISIÇÃO LISBOA, Pº. 1877)
Esta noite, os pesadelos voltaram. No Tribunal do Santo Ofício, repeti interrogatórios, soaram gargalhadas obscenas, reiterei declarações… Estive na Casa do Tormento, nos cárceres… Identifiquei rostos e vozes que flagelavam: relaxada à justiça secular, relaxada à justiça secular…. Quero fugir! As portas estão trancadas. Grito, rezo. Um uivo vindo de velhas trevas assusta-me. Tenho medo! Vai começar o tormento… Acordo em sobressalto. A lista de pavores, de desgraças, continuou, fora da prisão. Anos depois, regresso ao sofrimento e à humilhação que esfarrapam o corpo e a alma.
Tempo doente, o que me coube em sorte. De família cristã-nova, trazia enrolados ao pescoço o medo, a desconfiança, a perseguição. Nasci na Guarda, andei pela Beira, convivi com gente da nação… Maldito o dia 25 de julho de 1725! Eu e meu marido, Gaspar Mendes Furtado, fomos detidos… Havia culpas de Judaísmo contra nós, no Santo Ofício. Que eu judaizava, constava em trinta e cinco depoimentos de pessoas que comigo tinham celebrado cerimónias judaicas.
Como saber o que constava nesses testemunhos? Uma certeza tínhamos: quem não denunciava antes, na Casa do Tormento confessava tudo o que os Inquisidores queriam ouvir. Silenciar significava ser relaxada à justiça secular, ou seja, ser queimada na fogueira.
Como todos, comecei por declarar que aprendera a Lei de Moisés, com umas mulheres castelhanas chamadas Francisca, Isabel e Leonor, entre si irmãs. Perguntavam: e o sobrenome? Esquecera! De que terra, do reino de Espanha, eram naturais? Olvidara. O que me tinham ensinado? Declarei: a forma de salvar a alma.
Eram impenetráveis os rostos dos inquisidores; conheciam as fases dos processos, as diferentes estratégias para fazer soltar a língua dos mais resistentes. Os detidos percebiam, quando ocultar significava por a vida em perigo. Fui revelando que a Lei Mosaica obrigava a: rezar a oração de Padre-Nosso sem dizer Jesus no fim; fazer os jejuns nas segundas e quintas-feiras de cada semana; não comer carne de porco; guardar a Páscoa dos Judeus… comendo pão asmo… Reduzíamos a poucas regras o saber e o fazer judaicos. E os depoimentos eram considerados diminutos…. Comparavam declarações, confissões…
Pensava tanto nos meus filhos! Ignez de quatro anos, Manuel de dous (…) moradores na cidade da Guarda para onde os levaram da vila de Belmonte, quando me prenderam.
Nos últimos dias de janeiro de 1726, pressenti o perigo que corria, se continuasse a omitir práticas judaicas.... Acrescento os jejuns do Dia Grande e de Ester… Nomeio gentes de Belmonte, do Sabugal, de Vendas da Vela, do Fundão, do Teixoso, de Freixo de Numão, da Covilhã, da Guarda… com quem seguia a Lei de Moisés, com quem vivera alegrias, amizade, solidariedade…
Na prisão, as horas não passam; a cabeça fervilha, tremo, estremeço, choro… Enlouqueço?
A 6 de março de 1726, soube que o Promotor do Santo Ofício requeria que eu recebesse um libelo criminal acusatório. Advertiam-me: se confessasse antes da leitura do libelo, alcançaria mais misericórdia. Acusavam-me de encobrir ainda pessoas e práticas, não por esquecimento, mas com muito dolo e malicia, por não estar arrependida das minhas culpas e querer permanecer nos erros obstinada e cegamente.
Hão de qualificar-me de herege, ficta, falsa, simulada, confitente diminuta e impenitente. Requeria o Promotor que: aprovem que a ré incorreu em sentença de excomunhão maior, e em confiscação de todos os seus bens, nas mais penas de Direito (...) e relaxada à Justiça Secular. A fogueira!!! E os filhos?
Durante os meses de junho e julho lembro as noites de insónia, de aflição, de tormento, de horror. Esperava que me ouvissem de novo. Mencionei mais pessoas, mais lugares. E magoava-me!
Que decidiram os Inquisidores? Na divergência sobre a aplicação da tortura, venciam os mais duros. Em 27 de Agosto de 1726, entrei na “Casa do Tormento”. Dez dias antes, na mesma sala, fora torturado o meu marido, Gaspar Furtado. Ordenam-me que diga a verdade. Explicavam: Pela casa em que estava e instrumentos que nela via, entenderia facilmente quão rigorosa e perigosa era a diligencia que comigo se queria executar.... O pavor venceu as traves mestras da minha vida. E disse…
A sentença foi mais favorável; por ser herege, apostata da Santa Fé Católica, incorri em sentença de Excomunhão maior… ao confisco de todos os bens. Fui condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuo…
(Os judeus sefarditas, Clara e Gaspar, estiveram no Auto da Fé de 13 de outubro de 1726. Gaspar faleceu em 1730. Clara Henriques exilou-se, em Londres, com os filhos e sobrinhos… A família tornou-se abertamente praticante do judaísmo, frequentando a Sinagoga de Bevis Marks.)