Antonieta Garcia
TRÊS MEDOS: O BEZERRINHO, “AQUILO”, O CÃO PRETO...
Arrumar papéis exige decisões que põem à prova paciência e ciência. Rasgo muitos. Guardo alguns.... Entre os que resistiram ao caixote do lixo, perfilaram-se narrativas populares onde me encontrei com o Medo.
Figuravam num caderninho. Recolhidas há muitas décadas, julgava-as perdidas. Sentei-me e gostei de “ouvir” a Tia Maria, numa aldeia da Beira Baixa a contar as suas histórias de encantamentos.
“Era no tempo em que os filhos dos camponeses se “adomavam” bem ao campo. Eu casei nova. E nesse dia, chorei, como era costume... Não se sabia se o casamento era para o bem ou para o mal.
Por aqui, menina, o que os olhos avistavam pertencia ao Senhor Barão. Como alcançou tantas terras? Dizia-se à boca pequena que por herança do tio da mulher; mas também porque mandava mudar os marcos dali “dasquelas” fazendas! Aquilo era tudo dele.
“Diche-se” que neste chão, aparecia qualquer coisa de noite, e, às vezes, até de dia.... Ora, eu e outras mulheres, no verão, levávamos o comer aos homens. Regavam até muito tarde! Lá fui! Quando cheguei ao pé dele, não havia mais luz que o luar.... Era uma meia-noite, e os homens ainda a regar, a regar... Eu falei para o meu:
- Ó João, vi agora um bezerrinho tão lindo! Vou-o agarrar! Anda cá “mê pecanino” .... Anda cá...
O “mê” avisou-me:
- Ó mulher, ó diabo! Deixa o bezerro que isso não é um bezerro. É o Medo! E quando lhe fazem mal, ele também faz! Ele sabia!
Desde moça que eu e o João nos entendemos. Era muito gaiteiro, quando era novo. Levava o realejo e “balhava” com as cachopas. Era uma alegria, aos domingos!
Um belo dia, quando deixou o “balho” foi-se a deitar na loja do Zé Chouriça. Também lá apareceu o bezerro. As mulheres a chamarem-no: - Ó “mê pecanino”.. O João a avisar-me:
- Ó Maria, deixa isso! Olha que é o “Me(i)do”. Foge!
Eu ateimava:
- É um bezerrinho! É um bezerro!
Certo é que, estava mesmo ao pé... e “aquilo” sumiu-se. Apanhei um susto! Doutra vez, o meu, ficou a dormir na loja com mais seis rapazes, todos em “filêra”. De repente, deitou-se de bruços; não conseguia pegar ao sono. Inda bem não, daquele lado de além do poço, veio um cãozito para junto dele. E o cãozito começou: béu-béu, béu-béu, béu-béu...
- Ai, o filho da mãe, que não me deixa dormir... Pega numa pedra e atirou-a ao cãozito. Apareceu outro, preto, e o que estava a ladrar afastou-se para longe.... Com medo? O preto começa a crescer, a crescer, a crescer... já dava pela parede mais alta da loja...
O João afligiu-se: - Ai, ai, ai... Isto não é coisa boa! É o Medo!
Inda bem não, entrou pela porta daqui, do salão, diz que como é que era um enxame de abelhas. Zunzum, zum, zuumm, zzzzzz...
Havia um cheiro a podre, um “chêro” derrancado. O João aguentou sozinho o peso. Nem se mexia! Quando se cansou de estar em cima do meu, o tal cão preto parte pelo caminho que trouxe, porta fora, com o enxame, a zunir, a zunir, a zunir...
João rezou e agradeceu: Ai, bendito seja Deus! Já estou mais aliviado...
Sabe, dantes aconteciam estas coisas!!!
Pergunto: Por que acabaram?
Respondeu: E acabaram!?
Voltei ao tempo da infância; lembrei lobos, fadas e bruxas, ogres, madrastas venenosas, fantasmas... personagens e eventos assustadores de histórias do medo. O maravilhamento e o assombro perante o bezerrinho da Beira, o enxame, o cão preto e “aquilo” têm séculos! Os arrepios na espinha percorreram. depois, outros caminhos, trilharam outras veredas.... Certo é que estas aventuras absurdas, surreais transportam-nos sempre em viagens de sonho! Gostamos de ter medo?