Edição nº 1700 - 21 de julho de 2021

Maria de Lurdes Gouveia Barata
CARTAS

Outro dia escrevi uma carta a uma amiga, porque senti vontade de lhe expressar uma opinião e sentimentos advindos da nossa relação de amizade longa e verdadeira. Queria um registo diferente dos que faço por mail, queria algo à mão, como se a tinta roxa com que geralmente escrevo fosse também um contributo para algo de muito pessoal que desejava. Depois ela telefonou-me a agradecer, encantada, dizia, com a missiva: «Já viste, desabituámo-nos de escrever cartas e como é bom receber cartas! É diferente!». Eu também acho diferente e, de vez em quando, escrevo cartas pessoais, por meu punho, como dizia a minha avó. Quando recebo, raramente, algumas cartas dessas, gosto. Releio, aprecio caligrafias familiares. No entanto, escrever cartas assim é quase um fenómeno, como me dizia essa minha amiga. Nunca rasgo estas cartas. Guardo-as ciosamente e depois encontro-as, até anos depois, e releio-as. Às vezes sorrio, às vezes comovo-me, às vezes vêm lembranças associadas, às vezes despertam saudades. Sou assim, não há nada a fazer.
Lembro-me de, quando era adolescente, escrever longas cartas para amigas do coração. Eram mesmo longas e enchia-as com os meus sonhos. Devo ter por aí as cartas da Teresa C., que eram a retribuição das minhas, numas férias em Monsanto com a minha avó. Eu falava de o meu belo, terrivelmente belo, que era para mim essa minha aldeia natal, o Monsanto das penedias, o Monsanto singular e único de beleza e de afecto imorredoiro. E a Teresa, nas suas também longas respostas, referia sempre o teu belo, terrivelmente belo… Recordo ainda que quis arranjar um epíteto para designar o que Monsanto era para mim: o Monsanto que eu amava e em que descobria beleza única, era terrivelmente belo e esse terrivelmente tinha a ver com a severidade dos rochedos grandes e amontoados, «um dorso de monstro» como lhe chamou Fernando Namora, e também com o meu sentimento profundo dedicado ao chão natal, que superlativava nesse terrivelmente.
Também me lembro, e já casada, de enviar longas cartas, espécie de «diário de bordo» de férias, com eventos engraçados dos meus dias, ou algumas atribulações, que a minha amiga Isabel adorava receber… Mais tarde, recordávamos ao vivo e a risota instalava-se… Comecei a escrever e já a caneta me levou, sem eu dar por isso, para estas considerações. E digo caneta, porque estou a escrever à mão, para depois passar…
Desemaranho a rede de lembranças que me envolveu e lembro que me divertiu, ainda como adolescente, ter descoberto um antigo livro (perdido!) na casa da minha avó, com exemplos de Cartas de Amor, exemplos que pretendiam ajudar quem quisesse escrever. Ria-me, porque achava aquilo tudo tão exageradamente formal nos tratamentos, como digníssima senhora ou respeitável senhor (vagas lembranças me vêm) e atribuía, no meu riso avaliador, uma apreciação de parvoíce. Hoje, à distância, continuo a achar graça, de modo diferente. Porém, não vou tecer considerações. A verdade é que há muita gente que guarda maços de cartas de amor atados com fitinhas de seda. Lembro-me ainda de ouvir Tony de Matos a cantar «Cartas de amor / quem as não tem / cartas de amor / pedaços de dor / sentida de alguém / cartas de amor, andorinhas / que num vai e vem, levam bem / saudades minhas / cartas de amor / quem as não tem». Era refrão de uma canção sobre cartas. Eu gostava especialmente das andorinhas em vai e vem, porque sentia aproximação através da beleza desse voo.
E no labirinto dos fios da rede lembrei, de Fernando Pessoa, no seu heterónimo Álvaro de Campos, aquele poema que começa: Todas as cartas de amor são ridículas. O desenvolvimento conduz-nos a uma justificação dum ridículo (que pode ser motivador de riso ou significar insignificância) justificado e enaltecido pelo sentimento: «As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser / Ridículas.». O eu poético exprime o desejo de um tempo em que tinha escrito cartas de amor ridículas, porque era tempo de sentimento esdrúxulo, fora de regras habituais, elevado, corroborado pela última estância, num à parte entre parêntesis [ (Todas as palavras esdrúxulas, / Como os sentimentos esdrúxulos, / São naturalmente / Ridículas)]. Todavia, o enaltecimento, e a conclusão, vêm na quarta estância: «Mas, afinal, / Só as criaturas que nunca escreveram / Cartas de amor / É que são / Ridículas.».
E, assim, desviei-me da minha intenção inicial: falar da importância das cartas de escritores e para escritores, falar da importância da epistolografia. Essas cartas são fonte relevante para caracterizar uma época no seu contexto histórico e cultural. Ficará para uma outra vez. Por hoje fico-me com cartas pessoais, de amizade e amor, levadas por voos de andorinhas…

21/07/2021
 

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