Lopes Marcelo
TOLERÂNCIA ZERO
Qual a saúde e a vitalidade da nossa democracia, quando estão passados praticamente cinquenta anos de Estado de Direito Democrático, com eleições livres mas políticos profissionais entrincheirados nos aparelhos partidários e todo um conjunto de leis que a todos visam tratar com igualdade e dignidade cívica, mas que o sistema de justiça demora em aplicar?
Qual é o efectivo valor e a real prática das relações de proximidade, de transparência e de isenção nas políticas e nas práticas da gestão das nossas autarquias?
Como diz o povo, onde todos pagam é mais barato! Ou seja, nos impostos, nos custos dos serviços e nos apoios prestados, devem ser distribuídos através de critérios e de exigências regulamentadas de forma transparente e de carácter universal, isto é de forma cega, igual para a todos. Contudo, não é raro praticarem-se favores particulares usando e abusando dos recursos públicos e colectivos, designadamente dos meios financeiros que são de todos. Alguns cidadãos sabem da existência desses favores, mas fazem de conta que não sabem. Os beneficiados e os mais próximos de poderem vir a ser beneficiados, fazem de tudo para que se não saiba. O que importa é que não se saiba! Quando, afinal, aparece a notícia documentada nos órgãos da comunicação social, logo se recorre às pressões e à contra notícia, de que não é bem assim, que há má fé ou parcialidade na acusação, pois eles os decisores e executores de más e ilegais práticas de gestão, afirmam sempre com ar de pretensos ofendidos, sentirem-se de consciência tranquila. Mesmo quando já decorrem processos judiciais em investigação e até com acusações que definem arguidos, com a explicitação da fundamentação jurídica e as respectivas sanções, propalasse a tese de que até ao julgamento todos têm direito à presunção de inocência. Até, mesmo em face da sentença, se recorre para outras instâncias, empurrando para a frente, para o mais tarde possível a conclusão, sendo ajudados pela intrigante demora da justiça.
Vai lavrando, assim, a insidiosa epidemia do silêncio cúmplice, da indiferença no encolher dos ombros, de se tratar da vidinha numa quotidiana atitude táctica de se aproveitar tudo o que pode favorecer. Não o fazer, até é considerado tantas vezes uma questão de falta de inteligência. No aproveitar é que está o ganho e segue a oportuna esperteza em frente, mantendo-se as aparências pelo verniz da democracia formal. Não há uma postura de tolerância zero a tais práticas de gestão de favores particulares e proteccionismos com meios públicos. Não há um sobressalto generalizado de intervenção democrática permanente pela verdade, pela transparência e pelo contraditório.
Não há tolerância zero à rasoira da memória alimentada pela falta de disponibilidade na prestação de contas de forma objectiva, que compare o prometido e o planeado com o efectivamente realizado. Não há tolerância zero ao não ser disponibilizada a informação e a documentação em que se fundamentam as políticas e as decisões, embora a lei assim o defina, aliás mais como competência e dever dos autarcas do que como obrigação pois que, quanto às sanções para quem não cumprir, a lei é muitas vezes vaga e, até, omissa.
Não há tolerância zero ao uso e abuso do discurso pela democracia enquanto candidatos e, uma vez eleitos, perante o deslumbramento pelo poder se cai no quero, posso e mando; numa áurea de sacralização dos rituais, numa moldura de vaidades, deixando-se de reconhecer as limitações próprias, passando-se tantas vezes a não ouvir, a não se ter tempo nem paciência para se trabalhar em equipa e de forma coerente com as necessidades do território e das pessoas, a sua identidade cultural e história; cuja gestão lhe foi temporariamente atribuída por delegação de confiança política fundamentada em planos, projectos e compromissos.
Consideram os cândidos candidatos, depois de eleitos que é tempo de festejar, de acção, da procissão de eventos e números de política em que já não é importante ouvir outras opiniões e muito menos as intervenções críticas ou divergentes, já que o grupo de indefectíveis colaboradores depressa aumenta e se transforma em séquito de constantes “améns”, de palmadas nas costas, de cegas fidelidades cimentadas em contratos de “boys” enquadrados no orçamento anual dos recursos. Com o decorrer dos anos e dos mandatos, a procissão aumenta, consolidam-se os elos pessoais favorecidos do séquito. Por vezes, o “rei” vai nu, mas importa blindar o núcleo central da tribo, o não querer ver, e o partir para o ataque: “quem não é por nós é contra nós”, pois se consideram ofendidas suas Excelências, que se auto confundem com as Entidades democráticas que representam transitoriamente.
Não há tolerância zero ao poder exercido em benefício próprio ou de grupo e de partido, enquanto se proclama o interesse colectivo e ao serviço de todos. Até quando? A resposta, sendo importante na intervenção democrática e participação cívica quotidiana, é mais sensível e relevante nos períodos eleitorais. É a própria democracia que vai a exame e, de forma relevante, nas autarquias locais, nas nossas freguesias e concelhos.