Maria de Lurdes Gouveia Barata
DETURPAR, MENTIR, ENVENENAR
Que a palavra é uma arma, eis um quase lugar comum, comprovado, testemunhado e sofrido. A palavra pode ser arma contra a injustiça, tornando-se mesmo revolucionária, mas também pode disfarçar-se dum mimetismo perigoso, sendo traiçoeira. Deturpar é uma função da palavra que se veste com máscara para atingir alguém. Deturpa e entra no território da mentira. E da mentira passa a dano, desfigurando, corrompendo, por uma interpretação deliberadamente mal feita. E dou um exemplo recente: num dos debates para as legislativas, entre Rui Rio e André Ventura, veio a discussão o tema da prisão perpétua para certos crimes. Eu ouvi. Rui Rio falou de casos de países no mundo como o nosso, sem previsão de prisão perpétua, outros sendo esta mitigada ao fim de quinze anos, etc., nunca defendendo a alteração do que se verifica no nosso país. Pois espantei-me: passadas poucas horas alguém da comunicação social falava de Rui Rio a defender a prisão perpétua. Tanta desfaçatez deixou-me revoltada (e anote-se que não é o candidato em que penso votar). Desfez- -se mais tarde o equívoco, mas, por sensacionalismo, por intenção maledicente ou por burrice de interpretação, lançava-se a dúvida – intencionalmente.
Estamos no Ano Novo – 2022 – e este primeiro mês é de eleições. É altura, parece, de mentiras ou de desfigurar e manchar o nome de alguém. E confiro com alguma tristeza aquilo a que já estamos quase habituados: a tendência para acreditar desde que seja o que se diz de mal. Ouvir dizer bem já leva à dúvida. Não é mesmo uma tristeza?
A revista Sábado (6 a 12 de Janeiro 2022) referia (p.22) uma notícia já dada («A Tempestade do Aljube»). A directora do Museu do Aljube, Rita Rato, contratara duas militantes comunistas, acrescentando a revista «causámos inquietações diversas», inquietações identificadas desde a manifestação do historiador britânico Duncan Simpson («o lugar a tornar-se simples apêndice do PCP») até Nuno Palma professor de Economia da Universidade de Manchester, que «retwitou e ainda criticou o nome «resistência e liberdade», para um museu dedicado à memória da perseguição política». Mais uma vez me espantei: a Directora do Museu do Aljube tem todo o direito de contratar pessoas consideradas da sua confiança; que se saiba não era para abrir concurso; que se saiba também os perseguidos politicamente foram presos porque lutaram pela liberdade e resistiram ali muitos deles – liberdade e resistência, muito bem! Lastimável! Nada está bem. Ou estaria se fosse outra a militância? A zombaria do grande título «Não maltrateis os comunistas» torna-se grotesca, dela emergindo um azedume tendencioso no coração do autor.
A deturpação sempre me irritou e algumas vezes a senti ao longo da minha vida profissional, ou mesmo pessoal, sempre descobrindo intenções maléficas, nascidas de invejas ou simplesmente de incómodo com o bem de outros. A palavra pode ter a doçura de versos de Alexandre O’Neil – Há palavras que nos beijam / como se tivessem boca – ou palavras que são punhal, como diz Eugénio de Andrade, que ainda acrescenta que as palavras são um incêndio – são mesmo, para o bem e para o mal.
Há quem abuse das palavras, em prol de narcisismos ou de enganos fabricados, que se transformam em ratoeira – palavras que não passam a uma acção. Lembro um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (in O Nome das Coisas) de que faço excerto:
COM FÚRIA E RAIVA
Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
(…)
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra.
Todos os que constroem as falsas notícias (as fake news como já entrou nos ouvidos) usam a palavra para ter poder e jogar a favor de interesses inconfessáveis. Jorge de Sena, em «Ode à Mentira», expressa bem a queda de dignidade daqueles que usam a palavra para mentir. Vejamos a parte final: «(…) Ferocidade, falsidade, injúria / são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso / o coração que apavorado em vós soluça / a raiva ansiosa de esmagar as pedras / dessa encosta abrupta que desceis. / Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo. / Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos? / Descereis, descereis sempre, descereis.»
Embora o poeta prognostique a perda para quem se aproveite da mentira (descer, descer sempre), verifica-se que a mentira campeia e, segundo o título que atribuí a este artigo, a ordem é realmente a seguinte: quando se deturpa, deforma-se a informação, entra-se no reino da mentira e, consequentemente, esta envenena – magoa, pode mesmo destruir. Diz António Vieira: «para não mentir não é necessário ser santo, basta ser honrado».