Elsa Ligeiro
ROMARIAS - O MISTÉRIO DA FÉ
No próximo fim de semana regressam a Castelo Branco e Idanha-a-Nova, as Romarias da Senhora de Mércoles e da Senhora do Almortão; dois momentos exaltantes de manifestações religiosas e comunitárias; que, finalmente, recuperam a presença de romeiros, após a pandemia.
Continuam a comover-me as relações dos romeiros e peregrinos com a sua Senhora de devoção; a quem recorrem e fazem pactos em ocasiões de grande sofrimento e desespero.
Em dia de romaria, lá vão, muitos a pé, à procissão e aos minutos de visita pessoal e íntima; com que saldam as promessas feitas.
Há algo de misterioso na fé dos outros; uma linguagem corporal e de palavras ou pensamentos que são de uma intimidade absoluta.
Perante tais manifestações só nos resta o silêncio.
Já realizei várias vezes o percurso de Alcains à Senhora de Mércoles como peregrina, pisando lugares, quelhas, atravessando estradas e caminhando por bermas até à Capela.
As viagens em grupo foram sempre um momento de partilha de histórias de outras peregrinações épicas, à Senhora de Fátima, principalmente, mas também a muitas outras em que a Viagem é parte da promessa.
Para conhecer a riqueza da Senhora do Almortão preparo uma residência de alguns dias em Idanha-a-Nova, e as referências que me chegam são ainda mais intensas e de uma dimensão quase épica (ou não se localizasse na Raia).
No sul de Espanha, a romaria da Virgem de El Rocío, é a rainha das romarias; que, segundo os panfletos turísticos, chega a reunir perto de um milhão de romeiros. Mesmo tirando um zero ao exagero, ainda ficamos com uma multidão extraordinária.
Há nos “Novos Contos da Montanha”, de Miguel Torga, um texto delicioso dedicado à Festa de Santa Eufémia que recomendo a Leitura nos próximos dias e que começa assim: “Tinha cada um o seu sonho para a Festa de Santa Eufémia. O Nobre, era deslindar umas contas velhas com o Marcolino; a mulher, era pagar a promessa que fizera por causa do ferrujão dos bois; a filha, era passar a noite do arraial, a dançar a cana-verde nos braços do namorado”.
O final do conto não corresponde às expectativas iniciais dos protagonistas, mas nem por isso deixarão de aspirar a mais um ano na Festa de Santa Eufémia.
Há nas romarias, como festas populares que são, mais realidade que a devoção e o pagamento de promessas; mas em dia Festa não se reparam em vaidades, misérias ou opulências.
O que conta no fim da romaria são os cânticos partilhados, os olhos marejados de lágrimas dos que olham a Santa ou a Senhora como uma parceira em quem podem confiar nos momentos mais difíceis.
E perante tal relação fiel e verdadeira, nada mais nos resta que o silêncio e o respeito pelo mistério da fé.
Perante tal manifestação, o meu iluminismo, alimentado no humor de Voltaire, fica sem graça nenhuma; e lá fico sincera e rendida a partilhar abraços, risos, e a comover-me com as lágri-mas dos outros, sobre as quais não sei muito bem o sentido.
Nestas relações comunitárias em que se partilha a festa, mas em que a fé continua íntima e pessoal, cada um a entendê-la à sua maneira; reconheço uma riqueza ancestral cheia de futuro.
Talvez por isso, uma das canções que mais me emocionam sempre que a escuto seja: “A gente não lê”, do Rui Veloso, com palavras do Carlos Tê, e que ganha ainda mais sentido na voz popular e funda de Isabel Silvestre:
“Fica-se sentado à soleira/
A ouvir os ruídos do mundo/
E a entendê-los à nossa maneira/
Carregar a superstição /
De ser pequeno ser ninguém/
E não quebrar a tradição/
Que dos nossos avós já vem.”
As romarias, com a sua genuína e repetida alegria, mas também com a sua misteriosa fé; são parte importante desse legado que nos deixaram os nossos avós.