Guilherme D'Oliveira Martins
ANA LUÍSA AMARAL E EDUARDO LOURENÇO
«…se os versos apressados / me nascem sempre urgentes: / trabalhos de permeio refeições /doendo a consciência inusitada // dona de mim nem sou / se sintaxes trocadas / o mais das vezes nem minha intenção / se sentidos diversos ocultados / nem do oculto nascem / (poética do Hades quem me dera!) // Dona de nada senhora nem / de mim imitações de medo / os meus infernos» (Minha Senhora de Quê, 1990)
A homenagem que prestamos a Ana Luísa Amaral é subscrita, no essencial, por Eduardo Lourenço, no número 187 da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, datado de setembro de 2014, sobre o livro “Escuro” (Assírio e Alvim), que o ensaísta apresentou publicamente. Sei que Ana Luísa ficaria satisfeita ao ouvir de novo um texto que pediu a Eduardo Lourenço. Acrescentarei apenas alguma linhas a este texto tão sentido, que segue a um dos poemas que permitiu que começássemos a conhecer a poeta. «Os que conhecem e amam a poesia de Ana Luísa Amaral sabem como ela é uma subtil navegação a céu aberto entre os recifes da realidade. (…) Ana Luísa é da raça das sibilas e das cassandras, mas também das penélopes fiando às avessas o fio mortal da vida como obscuridade original na esperança de que se volva luz. E mesmo luz eterna. Esta vocação onírica e mítica, revisitação do imaginário clássico do Ocidente, irmana e distingue a sua aventura poética da outra corrente também a ela paralela da poesia como empresa real de transfiguração da vida épica inaugural da humanidade em modelo dos atos mágicos e utópicos de uma outra criação. (…) Toda a sua original obra poética podia levar o título de Memórias Revisitadas, uma outra versão do mítico título proustiano ‘Em busca do Tempo Perdido’, não em mera chave sublimemente autobiográfica, mas transtemporal como jogo de todos os tempos: «Em vez de vinte tempos / de mudança / queria um tempo / só meu: revisitado // Um tempo o mesmo / tempo sempre o mesmo / polvilhado de salas / de visita // Um tempo de mudar / formas às coisas / às vezes / abrir portas.» Embora fascinada pelos mistérios na aparência mais profundos que os do «tempo humano», é neste e deste que a sua voz poética se faz glosa e se extasia: «Revisitar os sítios / do pressentimento: / quase não ter-te / o tempo a recolher-se // E não mandar no tempo, / eu impotente / a vê-lo recolher-se // Tu quase a já / não estares / volume a menos // Revisitar / a / tua / ausência».
No seu livro de poemas “Escuro”, colocado sob o signo de dois videntes, S. João da Cruz e William Blake, Ana Luísa revisita uma vez mais a pura memória, a de uma infância onde obscuridade escutada e «a mais pura alegria» se misturam». Através «de tempos que nunca sobre si mesmos se fecham, (Ana Luísa) encontra no absoluto da paixão, com abandono e perda glorificada, a sua música mais rente ao silêncio, a da obscuridade da alma convertida como a de Mariana no cântico dos cânticos de todas as seduzidas e abandonadas. Chama-se «A Carta», dirigida ao que lhe foi tudo e ninguém, pura chama de amor por Stendhal lembrada como a mais alta forma de paixão: «Senhores: / hão de a dor e a ausência ter sabor, / um certo cheiro doce e demorado, / em forma de mil olhos // Pois vós olhastes essa minha ausência, / dissestes que dali criei palavras, / mas não por minha mão // Na vossa história, senhores, /eu fui só voz, /em vez de gente inteira // Inteira, nunca o fui, / dobrada ao meio pelo escuro das vestes, / pelas juras forçadas que cumpri, / pelo dever que me ditou meu pai // Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas, / eu, que as fui construindo devagar, / na escuridão da cela […] // Não fui só voz: / fui eu, dona de mim, / porque as letras me foram, e o amor, /e o ódio vagaroso // Só para isso me valeu viver, / para compor, igual a sinfonia, / tudo o que considerei // Ele foi só palavras que em palavras forjei, / bigorna onde moldei espadas e lanças, / o lume necessário // Só não moldei / as grades da prisão onde vivi: / essas, moldastes vós / até incandescência // Mas eu, nas letras que compus, / eu inventei a ausência como mais ninguém. / Eu fui a mão da ausência / numa cela escura // E os atos dele foram-me as metáforas, / imagens a seguir-me, mais fortes / do que a vida. / Por isso me chamastes, senhores, / no vosso tempo, uma palavra nova e ágil: / literatura // E assim eu fui-vos voz, / e doce mito. E nada mais / vos fui // Quero dizer-vos hoje, / neste tempo tão escuro, / mas de um escuro diverso do que tive: / adeus // Deixai-me o escuro, o meu. / Porque ao lado da minha, / a vossa ausência, essa que em mim plantastes, / nada é. // Tomáreis vós saber o que é ausência / Ausência: eu: demorada nestas linhas. / Dizer com quanto escuro / a noite se desfaz / e se constrói». Desta ausência Ana Luísa fez não uma luminosa habitação, mas uma espécie de esplendor, não como aquele com que Rilke dourou a Morte, mas pura saudade intérmina da Vida. Bem haja ».
E concluo: Falar da raça das sibilas e das cassandras significa que a sua palavra é um permanente alerta relativamente ao caminho incerto que percorremos. E se se invoca também Penélope é para dar conta de que há sempre uma subtil esperança que assiste à comunicação de Ana Luísa Amaral, na fiel espera do regresso de Ulisses a Ítaca, em nome da essencial dimensão ética de dignidade. Que são as “memórias revisitadas” senão a exigência da atenção aos outros, a nós, a tudo, na compreensão de um fio de Ariadne que nos liga a quem nos antecedeu e a quem nos vai suceder? Fazer do entendimento da ausência a riqueza do regresso, numa permanente presença da vida vivida, do desejo e da lembrança sem ilusões, eis o que buscamos. E assim fica clara a razão da luta de Ana Luísa Amaral pelas boas causas da humanidade, como modos de recusar a indiferença. E, como diz, pela sua boca, Camões a Petrarca: “sabendo que esta vida, / a vida em verso, / maior às vezes / do que a outra vida, // como depois de nós, / muito depois, / alguém, que será muitos, / falará” (A Génese do Amor, 2005). É isto a memória, como a poeta nos ensina: fazer da palavra o elo indelével que nos projeta na infinidade do tempo e na génese do amor.