Maria de Lurdes Gouveia Barata
O ANO DE 2024 – SERÁ NOVO?
As passagens de ano trazem um alvoroço de mudança e há que festejar com alegria bem bebida no champanhe, com audição de cantos e música, com deslumbramento de fogo de artifício que artisticamente impregna o negro do céu nocturno. Dizia eu alvoroço de mudança. E que mudança? Começamos pelas festas da passagem a quebrar o quotidiano, para celebrar a outra mudança esperada para melhor, que seja alternativa a substituir coisas más do Ano Velho a que se faz um adeus. É o que queremos ver e nem todos os olhos vêem o mesmo. Ver arrasta a compreensão e a reflexão e as intenções. Cada fim de Ano Velho processa-se nessa possível alegria futura do Novo Ano. E que novo? Não raro é uma continuação do já velho e estafado de mágoas e inquietações, depois de passar o inebriamento que incentiva a esperança de saúde e paz entre os homens tornados mais fraternos, de esperar que eventos de catástrofes humanas e naturais fiquem no passado, uma vez que atrás da tempestade vem a bonança.
Estou a divagar sobre o Ano Novo e o pensamento puxa-me para vias de dúvida, sem querer ser desmancha-prazeres, que não é a minha postura habitual. Todavia, também não quero dourar realidades para que haja consolo dum momento que seja motivador da esperança que sempre sustém o ser humano. A parte negativa começa em mim perante a entrada num ano bissexto. Confesso uma leve tendência supersticiosa, embora seja mulher de acreditar na ciência, na investigação, na capacidade de descobertas maravilhosas que a inteligência humana consegue. Mas lá vem um ditado: «Ano bissexto, ano travesso». Parto do princípio de que todos sabemos por que motivo se nos depara um ano bissexto de quatro em quatro anos (a Terra demora 365 dias e cerca de seis horas na sua translação, daí que no final de quatro translações haja mais um dia – quatro vezes seis horas – passando o ano a 366 dias). Não obstante, houve incidentes que se viveram nos anos bissextos (mas nos outros também). c. Fixei o ano de 1772 (uso da guilhotina para matar condenados à morte), o bissexto de 1940 (construção do campo de concentração de Auschwitz), 1912 (naufrágio do Titanic), 1948 (assassinato de Gandhi), 1968 (assassinato de Luther King) e outros mais…
Porém, o ponto principal que pretendo é pôr em relevo o que cada um quer ver. Ver tem um sentido profundo. Há bastantes anos, lembrei-me agora, vivi um momento engraçado: era uma tarde de sol, eu caminhava na Avenida Nun’Álvares, pouca gente, eu meio distraída numa distância entre o exterior e os meus pensamentos. Havia alguém a caminhar no mesmo passeio em sentido contrário ao meu, cruzámo-nos e ouvi uma voz: «Então? Está zangada comigo? Hoje não me fala porquê?!» Era o professor Matos, que leccionava Educação Visual na Afonso de Paiva. Parei, fiz uma exclamação de espanto, dei uma gargalhada e respondi: «Desculpe, professor, eu realmente vinha a olhar para si e não o vi!» Rimo-nos os dois e ele replicou: «Amanhã, já vou dizer aos meus alunos: meninos, prestem atenção! Olhar não é ver!» Esta pequena história, que passados muitos anos não esqueci, serve-me para a reflexão da passagem de ano, sobre o que se passa à nossa volta, perto de nós ou longe, em todo o mundo: os homens andam distraídos? Olhar as inúmeras imagens da crueldade das guerras (sobretudo a da Ucrânia e a do Médio Oriente, e outras, e adivinhando-se a hipótese de outras ainda) criou um hábito de distracção que pode empedernir muitos corações humanos? Ver, com a razão e o coração, já leva a compreender, a revoltar-se, não ficando em silêncio, a tentar corrigir. Será que não estamos a descrer do próximo? Vislumbramos alguma luz ao fundo do túnel para a mudança que se espera do Ano Novo? Não me parece, é o que sinto e acredito nessa continuidade, como na continuidade da catástrofe climática que os seres humanos provocaram, porque não quiseram VER! A ganância, a ignorância, o comodismo e, mais grave, a indiferença foram minando frutos de podridão.
Lembro agora um documentário que vi há poucos dias num dos canais de televisão sobre alterações climáticas. Não vi seguidamente, mas apanhei a parte final: o comentador, emoldurado por uma paisagem de serra e mar, terminava aproximadamente com as palavras: entre este quadro de catástrofe, há algo positivo: o planeta Terra vai sobreviver. Nós é que não. E o planeta será mais feliz sem nós. Senti o calafrio da verdade.
Sempre acreditei e defendi que o homem é a medida de todas as coisas. Saint- -Exupéry disse algures: «Ser homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção do mundo». Ano Novo, Vida Nova – que traga a coragem para a mudança. Seja ou não bissexto, cada ano traz os dias – as madrugadas a seguir às noites.
Termino com um brinde à vida!