Guilherme D'Oliveira Martins
«A CULTURA COMO ENIGMA»
Publicamos hoje o pórtico do livro acabado de publicar pela Gradiva intitulado “A Cultura como Enigma”. Aí a biblioteca como labirinto virtuoso é uma constante, uma personagem principal, através da qual o autor procura ligar os autores clássicos e muitos contemporâneos aos dias que correm. E este estranho enigma liga, a um tempo as gerações que nos antecederam e a sua memória e a contemporaneidade. Aí se fala da cultura como realidade viva, como movimento permanente onde o presente se encontra com o tempo longo, no qual o que recebemos das gerações passadas se projeta agora e para o futuro, num incessante processo complexo de criação e metamorfose, sempre imperfeito e inacabado, tendo a possibilidade mágica de dialogar com quem nos antecedeu. Eis o enigma.
«Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.
Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as enciclopédias e os dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho «Dicionário de Portugal», a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca enciclopédia espanhola ou o «Larousse Illustré», a folhear os atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage... Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa).
Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances — dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne), ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha...) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstói era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de Guerra e Paz. Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa... Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô... E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar.