Lopes Marcelo
O MADEIRO DE PROENÇA-A-VELHA
Há madeiros e madeiros! Embora com características algo diferentes de terra para terra, pode pensar-se que no essencial esta tradição relacionada com a celebração pagã do solstício de Inverno através do fogo é idêntica na nossa região. O ritual do fogo solidário e unificador foi assumido como símbolo redentor pelo Cristianismo. Mesmo para quem há mais de cinco décadas se interessa e procura estudar o rico mosaico das nossas tradições, ainda há surpresas.
De facto, pude testemunhar no passado dia 8 em Proença-a-Velha a tradição do madeiro bem viva, completamente enraizada na comunidade e de contornos bem originais numa povoação tão antiga quanto a origem do nosso país, antiga Vila de fundação templária, sede de concelho (com Foral de Pedro Alvito) entre 1218 e 1836, que viu o Foral confirmado em 1510 por D. Manuel I.
Desses tempos autárquicos guarda símbolos importantes como o Pelourinho e a Misericórdia quinhentista. Mais recentemente, do ponto de vista administrativo, é freguesia do concelho de Idanha-a-Nova. Teve a sabedoria de desenvolver e ancorar a sua vivência comunitária em instituições como a Santa Casa da Misericórdia, a Paróquia, o Lar, a Junta de Freguesia e a Associação Fraterna dos Amigos de Nª Senhora da Granja. E a articular e a coordenar toda a actividade organizaram a Provençal-Liga de Desenvolvimento de Proença-a-Velha. Assim, conhecida a comunidade mais de perto, melhor se entende a forma empenhada e organizada com que preservam e celebram as tradições e os valores do património local.
No que respeita à tradição do madeiro, a sua revisitação anual constitui uma notável celebração comunitária, de entreajuda, de união entre toda a população em que as fracas forças individuais plasmadas num movimento de voluntária e entusiástica acção colectiva puxam à força de braços o madeiro, trazendo-o em dois carros de bois, do campo para junto da igreja matriz.
A descrição desta epopeia popular é feita noutro local deste nosso jornal de forma bastante documentada. Contudo, como compreender que nunca se tivessem usado juntas de bois para puxar os carros que carregam o madeiro? Que sempre foi o povo a puxar o madeiro é confirmado pelas pessoas mais antigas.
De facto, impressionou-me o testemunho do Senhor Francisco Silva que nos seus quase noventa anos referiu que mesmo no tempo em que havia rapazes residentes que iam às sortes (à inspecção pelos dezoito anos), o madeiro era puxado à mão com a participação do povo, pois sempre foram muito fortes o sentimento e a vivência comunitária. E ele, que foi mestre ferrador bem o viveu, pois contactava com muitas pessoas.
O processo de juntar dois carros de bois para carregar o madeiro e serem puxados através de uma longa corda em que a espaços se enlaça uma travessa de madeira em que as pessoas pegam unindo-se em esforço colectivo, tem contornos de alguma semelhança com a capeia arraiana da zona do Sabugal. Em ambos os casos, a população une-se e cria os meios e os instrumentos que considera mais adequados para atingir um objectivo colectivo que só comunitariamente pode ser alcançado. A união faz a força é nestes casos a comprovação prática da sabedoria popular.
Uma outra vertente da dimensão fortemente comunitária destas tradições é a força telúrica das origens que nos conduz ao conceito de Comunidade de Origem. É a matriz comum do sentimento de pertença que mantém vivos os laços de afiliação dos filhos da terra, independentemente do local onde residam. Sentimento de pertença que se estende às gerações de descendentes, dando sentido de partilha às emoções entusiásticas dos mais jovens. E é, também, surpreendente esta dimensão muito significativa da participação de jovens associados à festa comunitária do madeiro em Proença-a-Velha.
Também os cânticos entoados durante o cortejo de puxar o madeiro são genuinamente populares, qual moldura do sentimento do sagrado da época natalícia.
Estão as instituições de parabéns por sentirem e vivenciarem as tradições de modo a que a identidade cultural se mantenha viva e sirva de âncora às novas gerações. Constituírem-se e manifestarem-se como pedras vivas do património local é o caminho e a garantia de que as nossas bandeiras culturais se manterão bem erguidas.
Conscientes do valor das nossas tradições que perduraram e atravessaram tantas gerações podemos e devemos acreditar que podem manifestar-se para além da esfera local e, até, regional. Algumas, por serem originais e genuínas, são elementos do património imaterial que merecem ser reconhecidas a nível nacional. Oxalá não falte visão estratégica, capacidade e determinação ao poder local e autárquico para desencadear tais candidaturas. No caso do madeiro puxado à corda de Proença-a-Velha reúne condições para que tal processo seja levado em frente com êxito.