Luís Filipe Castro Mendes
A POESIA DE GONÇALO SALVADO
Este livro*, em que Gonçalo Salvado reúne um conjunto de poemas votados ao corpo e ao amor, com uma magnífica interpretação gráfica de Álvaro Siza Vieira, está voltado para o lado claro, solar e de festa pagã do erotismo. É que há um outro lado no erotismo, o lado do terror e da transgressão, que o peso das nossas raízes judaico-cristãs contribuiu para nos impor.
O erotismo destes versos não cede a sua luz irradiante a esses pontos negros de culpabilização e vergonha, que nos marcaram durante séculos. Ele regressa à luminosidade pura da ética pagã e em cada poema um ato de amor realizado nos interpela e desafia.
A poesia do amor cortês, que Rougemont examina no seu “L’ Amour et l’Occident”, é uma poesia da sublimação de um desejo que não pode ser realizado. Petrarca e Camões seguem essa linha, embora encontremos em Camões, homem do Renascimento, uma celebração gloriosa do amor físico, que não tem par na nossa tradição poética. O erotismo nos nossos clássicos vem em geral sublimado num amor “do desejo que permanece desejo”” (René Char) que atravessa toda a nossa poesia, de João Roiz de Castelo Branco a Teixeira de Pascoaes.
Se houvesse um par para a poesia de Gonçalo Salvado, ele seria Eugénio de Andrade, o luminoso e amoroso Eugénio, esse Eugénio que ilumina os corpos na sua dança erótica e vive a sua poesia na claridade solar de um desejo realizado. Gonçalo Salvado dança também com as palavras e nunca esquiva o encontro amoroso dos corpos com a luz viva dos poemas. Essa luz vem dos corpos e vai para os corpos, plenos de realização e êxtase.
O “paraíso sem mediações”, que Eduardo Lourenço via na poesia de Eugénio de Andrade, encontra-se aqui intensificado numa dimensão carnal que nos poderia até levar à mística, como nos poetas sufis ou em Santa Teresa de Ávila, se Gonçalo Salvado não estivesse sempre do lado da realidade imanente do amor dos corpos, recusando a fuga para qualquer transcendência.
Eros opõe-se a Thanatos, esse instinto de morte que leva a Humanidade a dilacerar-se periodicamente em guerras destruidoras e mortais. Eros, ensina-nos Freud, é o instinto que mantém a Paz. E é também aquele que nos abre para a alegria e para a criação, para a arte e para a beleza. De cada poema, de cada criação artística se pode dizer, como dizia Keats: “a thing of Beauty is a Joy forever”.
Ficarão connosco estes poemas de Gonçalo Salvado, com os desenhos de Álvaro Siza Vieira e o prólogo de Maria João Fernandes, como mais uma manifestação da nossa humanidade, contra tudo o que nos queira manipular e sujeitar. A poesia ensina-nos a preciosa fragilidade das palavras. E assim nos torna a todos mais humanos.
*Quando a Luz do Teu Corpo Me Cega (RVJ Editores)
Poeta e ex- ministro da Cultura