Maria de Lurdes Gouveia Barata
RETALHOS DE AGOSTO 2020
1. ESTÁ ALÉM O MAR. De certeza. Mesmo que eu esteja a mais de duzentos quilómetros. Além é uma distância muito relativa, que se encurta ou alonga na nossa imaginação. A linha do horizonte dos dois azuis – o céu e a água – duma manhã de férias, límpida, descansa os olhos e a alma. Eu não estou lá, mas imagino-me nesse além. Interfere o absurdo intolerável, mas real, do vírus estúpido que contagia o quotidiano de toda a humanidade. É opção não ter ido molhar-me no mar, que tanto amo, respirar fundo as brisas da maresia, sentir essa carícia no rosto. É realmente uma opção em que me deixei chantagear pelo maldito do vírus.
2. -Olha, quem ela é! Conheci-a pela voz! O sorriso adivinha-se jovial POR DETRÁS DA MÁSCARA. Eu fico de testa franzida, hesitante, mas eu não estou a conhecê-lo, ele tira o chapéu, baixa a máscara num ápice e num ápice a repõe, já sei quem é, isto da máscara, enfim, somos dois velhos amigos (e não amigos velhos!) que só não caem nos braços um do outro, são as normas, nunca se sabe sobre a espreitadela aleivosa do vírus estúpido. Braço com braço, muito rápido o toque que substitui o abraço que nos apetecia. Vírus estúpido!
3. A máscara incomoda bastante no Verão, sobretudo no Verão sempre impiedoso de Castelo Branco O melhor é estar em casa… Mas A MÁSCARA A DORMIR NUMA CAMA DE HOSPITAL torna-se insuportável, o sono é intermitente, curto, desespera-se por não vir, estremeço em breves intervalos. Desvio a máscara, a ver se respiro e durmo, mas estou na cama do meio duma enfermaria de três pessoas e as minhas companheiras do lado começam a tossir e a espirrar, quero proteger-me, ponho a máscara, os gemidos elevam-se progressivamente de tom, vem a enfermeira a tentar acalmar, eu desejosa que chegue depressa a manhã depois da noite sem dormir, mas quero a luz do dia. De um dos lados voltará o ó menina, ó menina da D. Maria, que já faz algumas confusões. É contínuo o chamamento ó menina, ó menina, ó ‘nha mãe, ó ‘nha mãe, quero a minha casa, eu sou pobrezinha ninguém me liga, às vezes sou eu a menina, os dias sucedem-se, as longas tardes no quarto e eu tento sossegar a D. Maria, comecei a adoptá-la como parente, sossego-a, prometo que havemos de ir as duas para a nossa casa, não acredita em mim?, acredito sim, menina, e se eu mandasse vir um avião que nos tirasse pela janela, queria vir comigo?, eu quero ir, ela ri, eu rio, nós sorrimos, e eu vejo toda a doçura do sorriso da minha avó iluminando-a de suavidade e ternura (é impressionante a parecença dos sorrisos e da mímica!), os olhos bem castanhos riem também no rosto redondinho, ficando tão doce que me enternece. Olhamo-nos nos olhos e nenhuma desvia o olhar – uma cumplicidade afectuosa desperta tacitamente entre nós. À noite sossega um pouco, mas há outras que chama ó Manéli, ó Manéli, vai subindo o tom e vem a enfermeira, outras devem sossegá-la com algum medicamento, mas eu não durmo na mesma, ou durmo como um soluço de intervalo e levanto- -me e vou à casa de banho sempre com o Cajado atrás de mim, que é o suporte de garrafas e garrafas de soro & outros, passou a integrar o meu corpo físico. Não como, não bebo, alimento-me do Cajado, é o ataque à grave infecção que me dominou – o estúpido do vírus não me apanhou até agora, mas o estúpido do vírus deve ter-me deitado mau olhado, só pode ser isso… faço dele o bode expiatório… Desejo tudo de bom à terna D. Maria e à outra companheira do lado com quem falava menos, com alguns gestos, porque era muito surda e um tanto ensimesmada. Esta pequena narrativa hospitalar poderia tornar-se bem mais dolorida ou azeda, mas não quero ir por esse caminho. Agora estou convalescente, em casa, e lembro quando o meu pai dizia de brincadeira que «não há melhor andar do que em casa estar». Sinto isso. A casa torna-se o espaço do nosso prolongamento identitário. Recantos falam dos nossos gestos, espaços falam do nosso viver os anos e os afectos.
4. A DESTRUIÇÃO DE BEIRUTE pelas duas tremendas explosões no princípio de Agosto faz-nos estremecer e perturba-nos, vem a revolta, porque houve incúria dos governantes responsáveis perante a bomba-relógio que o porto albergava. Essa irresponsabilidade trouxe dramas humanos, a morte, o luto, o desalojamento. Inquieta-nos cada vez mais a insegurança (nas mãos de tantos que governam) e lembro-me do perigo de Almaraz aqui tão perto. Mas fere-me igualmente o sofrimento de Beirute muito mais longe. A irresponsabilidade toca sempre perigos iminentes porque se encosta no comodismo de tudo ao monte e fé em Deus…
5. Mas vou VOLTAR AO MAR e à areia onde me sento para ficar longamente no vai-vem das ondas. E está a dar-me para uma observação sarcástica de um retalho de Agosto: lembro uma anedota do menino Joãozinho que estava na praia com a mãe e era cego (pelo menos nessa altura…) e a mãe dizia: Olha, Joãozinho, há meninos a brincar na praia, há gaivotas no céu, há um barco que passa lá longe, o mar está muito azul… e o Joãozinho: «Bem feita que eu não vejo! Bem feita que eu não vejo!» Achei que era adaptado ao desatino que se instalou na vida dos homens e aproveito para deixar um recadinho ao vírus estúpido: havemos de recuperar a nossa liberdade e a nossa harmonia!