Edição nº 1902 - 2 de julho de 2025

Guilherme D'Oliveira Martins
NO CENTENÁRIO DE ISABEL DA NÓBREGA

Mon orgueil est d’avoir aimé! Rien d’autre.
Aragon

Fascínio. Eis a palavra que podemos usar perante uma pessoa como Isabel da Nóbrega (1925-2021). Recordo-a em muitos encontros, sempre com a mesma simpatia, afabilidade, civilização. Na minha memória sucedem-se as imagens – um dia, em S. Bento, a recordar-me as suas raízes familiares no bairro que bem conhecemos, num mundo que rapidamente mudou; noutra ocasião, na casa do Vau, com Maria Barroso e Mário Soares, num maravilhoso final de tarde algarvio; diversas vezes, no Centro Nacional de Cultura, a falarmos de como cuidar do bom uso da língua, em termos práticos. Por vizinhança, houve um tempo em que nos víamos amiúde. E as suas crónicas nos jornais (o inesquecível Quadratim) eram oportunidade para respirar o ar do tempo, nas suas naturais diferenças. Isabel da Nóbrega era uma leitora exemplar. E a sua escrita demonstra esse cuidado em ligar o imprevisto da vida e o rigor das palavras. Óscar Lopes compreendeu-o muito bem e referiu um “equilíbrio estético entre nós invulgar. A narrativa sugere um grande, um inesgotável conhecimento de casos e coisas, coisas vividas, textos religiosos e literários, terminologias científicas, problemas de casuística familiar, conhecimentos colhidos em campos heterogéneos de convivência ou de informação que os jornais não registam, colhidos em viagens, leituras e arte…”.
Tenho na minha frente duas fotografias que representam um tempo extraordinário: ambas de julho de 1958, numa está Isabel, em primeiro plano, com o seu olhar penetrante e único, com Sophia de Mello Breyner, José-Augusto França e José Arrochela, na outra está Ruben A., ladeado por Sophia e Isabel. Os dois retratos são a representação do puro fascínio e do encontro entre a cultura e a vida. Falo de uma cultura não pretensiosa, no sentido mais perene de vida do espírito, adivinhando até o picaresco. Folheio “Viver com os Outros”, a obra-prima, e leio: “Assustas-me Aninhas! Ao observares assim as pessoas com esse teu olhar grave e redondo, de mocho, pobre humanidade que somos nós, deixas-nos esmagados, não? Cilindrados, como diria o teu amigo Ruben A.” O romance dá-nos várias experiências e testemunhos entrecruzados num jantar duma noite de junho. Como disse, em intuição certeira, Eduardo Prado Coelho, na “Colóquio”: “por entre a sua desordem e dispersão, o diálogo consegue ir tecendo aquele sentido totalizador que é a pedra de toque de toda a arte”. E assim a escritora usa a espontaneidade e a criatividade, que lhe permitem vencer o risco de uma obra datada. E Ana, a protagonista, procura atravessar os outros com os olhos para lhes desvendar a alma. Essa ousadia é “elemento de afinadíssima engrenagem do romance e um dos seus pontos de chegada”. Assim, Isabel da Nóbrega, por si, como escritora marcante (não haja dúvidas) obriga à leitura atenta do que escreve, e assim se compreende como encontrou um lugar próprio, anunciador de uma literatura desenvolta, livre, fundada num grande rigor no uso da palavra escrita e falada e numa capacidade especial de transpor a experiência duma grande leitora na vitalidade de uma grande autora.
E lembrei-me de um texto antigo. «Diz o Eclesiastes que nem o Sol nem a Morte se podem olhar de frente. Já tenho desejado acrescentar ao versículo a palavra solidão». Assim começava uma crónica de 1972 sobre uma vizinha que vivia só e apenas se alegrava com ouvir os passos de Isabel quando regressava a casa depois de uma ausência… Ah! Como importa superar a indiferença em relação à humanidade. E volto a reler “Viver com os Outros”: “São as pessoas que me interessam. Num romance quereria pegar numa meia dúzia de pessoas e pô-las ante os olhos do leitor carregadas da sua verdade (…). A minha pretensão seria, para melhor vos expor, iluminar-vos nesta aparente imobilidade».

02/07/2025
 

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