Joaquim Bispo
O EREMITA
Na manhã em que foi anunciado o fim das medidas de confinamento social, Jerónimo cortou a barba. Ao fim daqueles meses, já começava a dar ares de monge ortodoxo. Teve dificuldade em concentrar-se na tarefa delicada de rapar a cara, com tanto barulho na rua. Ouviu-se um estrondear de foguetes. Um pequeno golpe ensombrou-o. O leão estremeceu, inquieto.
Antes de sair, meteu um bocado de pão rijo na boca. Largara-lho, havia dois dias, a pega que vinha aliciando com as larvas que lhe iam aparecendo na despensa. Na rua, foi metralhado pelo ruído infernal de buzinas e carros em alardes de escape. Os passeios iam cheios, como se o perigo de contágio tivesse desaparecido. Parecia que tinha vindo gente de todo o concelho. Abraçavam-se aos magotes, em amizades inesperadas.
Bem lhe apetecia apertar a roliça do prédio em frente, que, de uma janela para a outra, o tinha ajudado a acalmar o leão, nos negros tempos do confinamento radical, mas retraiu-se. Uma coisa era o distanciamento forçado, outra a realidade.
No meio da multidão, muitos pareciam tolinhos, a lançar olhares para todos os lados, deslumbrados, como se nunca tivessem visto prédios, carros e árvores. Paravam no meio da rua, boquiabertos e atarantados. Abriam os braços, dançavam, riam, davam gritos estridentes ou roucos, cantavam.
Passou uma ambulância em marcha acelerada - o som terrível da sirene fizera arrepiar muitos -, mas, desta vez, foi aplaudida freneticamente. Alguém ainda velava pela saúde geral.
Alguns vizinhos cumprimentaram-no; passou um bando animado que o abraçou efusivamente, sem que o conseguisse evitar. Os desconhecidos quiseram depois fazer uma espécie de dança tribal, mas Jerónimo, desconfortável, conseguiu afastar-se.
Manquejando um pouco, rompeu a multidão e atravessou a cidade em direção ao arrabalde, no trajeto mais direto para campo aberto. A um quilómetro dos prédios, conseguiu voltar a ouvir alguns chilreios, consolo natural que muitas vezes o salvara, no longo ostracismo imposto.
Por associação, lembrou-se do que o encaminhara para ali: as suas árvores, os quatros frágeis caules que plantara, antes da pandemia, numa zona de propriedade incerta no final desse caminho. Tantos quantos os ovos que tinha o ninho de cotovia que encontrara naquele dia que parecia tão longínquo.
Temeu pelas suas plantinhas. Duas tílias e dois carvalhos. Passara o tempo chuvoso e já tinham vindo muitos dias de sol intenso e grandes calores. Teriam aguentado?
Em quarenta minutos, chegou à sua floresta pessoal. Quatro raminhos secos, sem folhas, separados entre si por quatro metros - qual mortífero distanciamento social -, era tudo o que restava da sua mais recente utopia. Então, só então, quebrou: foi incapaz de conter o choro. Depois dos meses de cárcere e ascetismo, o vírus dera-lhe a estocada mais dolorosa. Deixou-se ter compaixão de si. Soluçou, sentado numa pedra da berma do caminho, o rosto molhado apoiado nas mãos.
Passados uns minutos, uns piados fizeram-no levantar o olhar. Olhou em volta e avistou um pequeno bando de cotovias, no seu característico voo de impulsos e pausas no bater das asas. Correu à concha moldada na terra, sob uma ervas, onde vira quatro ovos havia tanto tempo. Vazio. Quis acreditar que os ovinhos se tinham transformado em cotovias e agora voavam, vivas e em liberdade. A pandemia matara muitas pessoas - umas de morte corporal, outras de morte social -, mas poupara o desenrolar normal da vida da Natureza.
Voltou para casa, apaziguado - a sua caverna, como gostava de pensar. Tinham sido tempos ameaçadores, mas agora havia que recomeçar. Dar oportunidade de vida a si e a outras árvores. Sem esquecer o leão, que estava mais morto que vivo.