Joaquim Bispo
O SEGREDO DO RETRATO DE MÁRIO SOARES
O visitante comum que percorra a galeria de retratos do Museu da Presidência encontra o que espera: um enfileiramento de grandes retratos de figuras sisudas, solenes, um pouco ameaçadoras até, dos presidentes da República Portuguesa.
Então, surge-lhe o retrato de Mário Soares, que rompe com a lógica hierática dos retratos e choca violentamente com as representações anteriores. O retratado mostra os dentes, sorri, tem um ar bem disposto e descontraído, parece falar para o observador.
Muitos visitantes e alguns críticos têm reprovado esta formulação do retrato de um Chefe de Estado e, embora reconhecendo a bonomia do retratado, prefeririam um retrato mais austero. No fundo, um Chefe de Estado é mais do que si próprio, é a figura da Nação que deve, a bem da dignidade dos símbolos da pátria - como o hino e a bandeira -, apresentar maior compostura.
Embora contrafeito, o visitante comum desculpará a irreverência, que atribuirá a ideias modernistas do retratado, de quem sobressairá uma imagem de homem de mentalidade arejada.
O rosto não é o de um retrato típico, mas não deixa de refletir a postura de bonomia de Mário Soares, que olha o interlocutor nos olhos, sem preconceitos. Apresenta a atitude de bom conversador, disponível para o gracejo e para se entusiasmar com o discurso do outro. O braço direito gesticula animadamente, como um orador inflamado. Mas sorri. Inclina-se para a frente, em atitude de aceitação e entendimento com o outro. Evoca a estátua do poeta Chiado, só que Soares está instalado numa cadeira muito especial. Relacionando a figura, a função e a forma da cadeira, reconhece-se-lhe o caráter marcadamente associado ao poder, devido às duas cabeças de leão que ostenta nos braços. Todos os poderosos gostam de se associar ao rei da selva.
De que falará ele com tanto entusiasmo? É um político, um socialista. A mancha rosa que espalha com a mão direita não deixa dúvidas. Mas trata-se de uma mancha informe, um esboço, uma ideia. Fala dela sem fazer um desenho rigoroso. É uma ideia que não se sabe como pôr em prática, um sonho, uma utopia. Lido assim, o retrato fala.
E a mão esquerda o que faz? Aponta rigidamente para si próprio. Contrasta fortemente com a direita, que é mais natural em alguém que fala para outrem. Esta mão esquerda está colocada numa posição estranha, inesperada. Conterá alguma pista para leituras alternativas? De Júlio Pomar, em cujas obras já terá entrevisto mensagens escondidas, o visitante avisado só pode esperar desafios interpretativos.
Continua...