Relatos de uma viagem à China
A cidade das cabras e a cidade do kung fu
Dizem que viagens longas e expectativas gigantes andam de mãos dadas e eu só posso concordar. Alimentei muitas expectativas em relação a Cantão ou Guangzhou, a capital da província de Guangdong. Por muito bonitos que sejam os templos e os pagodes chineses, não se conhece o país sem se visitar uma grande cidade.
Cantão é a terceira maior cidade da China, a mega-metrópole do sul com mais de 12 milhões de habitantes, sendo também um importante centro industrial, administrativo e financeiro. Daqui irradiou o cantonês, a segunda língua mais falada no país, tão importante que a capital é mais conhecida no estrangeiro pelo seu nome cantonês, Pequim, do que pelo seu nome em mandarim, Beijing.
A cozinha regional também é uma das mais conhecidas: dim sums, leitão assado, carnes agridoces ou dragão em jade branco (lagosta cozida ao vapor com abóbora)... os cantoneses, como de resto todos os chineses, gostam muito de comer. Acontece que em Cantão se come, literalmente, de tudo. Diz o ditado que aqui se “como tudo o que tem pernas, excepto mesas, e tudo o que voa excepto aviões”.
Cantão é uma cidade do século XXI que cresce na vertical, com museus de primeiro mundo, arranha-céus e edifícios espelhados, lojas de rua que vendem anúncios em neón como quem vende latas de Coca-Cola. O reverso da medalha? A poluição, que forma uma névoa permanente. Este é um problema de não somenos importância, o país é o maior emissor de dióxido de carbono do mundo, daí tantas pessoas usarem máscaras diariamente.
No horizonte sobressai a Torre de Cantão que, do alto dos seus 600 metros, foi a mais alta estrutura da China até 2013. Construído por altura dos 16º Jogos Asiáticos, este cartão postal é muito difícil de fotografar não pela sua altura, mas porque a constante névoa de poluição lhe retira muita beleza.
A cidade tem, no entanto, alguns pontos verdes que merecem uma visita, nomeadamente o Parque Yuexiu com os seus lagos artificiais, alguns vestígios da velha muralha e a famosa estátua das cabras, que encerra uma lenda genesíaca.
Diz-se que a região era, na Antiguidade, muito pouco fértil. O povo sofria com a fome e tinha que trabalhar duramente para colher algum fruto da terra. Eis que cinco imortais os visitam, trazendo consigo cinco cabras que, por sua vez, carregavam sementes de arroz nas suas bocas. A bênção das divindades e a nova sementeira trouxeram prosperidade à região que hoje é Cantão, razão pela qual esta é também conhecida como a “cidade das cinco cabras”.
A cidade do kung fu
A poucos quilómetros da capital provincial, fica uma outra grande cidade, de seu nome Foshan, famosa entre os seguidores de artes marciais. A região pariu o talentoso Bruce Lee e outros mestres, não tão famosos, mas maiores nestas artes guerreiras: Yip Man e Huang Feihong, grande mestre de artes marciais, especialista em medicina tradicional chinesa e filho de um dos 10 tigres de Cantão.
No memorial de Huang Feihong (1847-1924), ainda hoje é possível assistir à dança do leão, uma arte cerimonial para exorcizar espíritos maléficos, invocar sorte e felicidade. O leão – figura mitológica com características de quatro animais sagrados – dança ao ritmo de tambores e gongos. Manejado por dois dançarinos, o peludo animal movimenta energicamente a cabeça e as mandíbulas, salta entre plataformas de várias alturas e abana a cauda, numa pausa brincalhona.
O espectáculo é apresentado diariamente aos turistas neste espaço museológico que integra o complexo do Templo dos Ancestrais, em Zu Miao, construído nos tempos da longínqua dinastia Song e dedicado à deusa taoísta do mar.
Apesar de ser chamada de “cidade zen”, Foshan é uma cidade em tudo ligada à guerra. Mas eu consigo abstrair-me completamente dessa vertente bélica; basta-me apreciar a arquitectura e os belíssimos telhados esculpidos em madeira, basta-me fazer companhia aos veneráveis que jogam esse impenetrável jogo de xadrez chinês.
Aliás, o templo de Zu Miao ficará eternamente gravado na minha memória como um lugar de paz. Embalada com o cheiro do incenso, o silêncio daqueles que ali vêm deixar uma prece e uma chuva fina que abençoa a manhã quente, sorvo esta tranquilidade maravilhosa e deixo, também, um agradecimento por nenhum sobressalto ter perturbado esta minha aventura. Não chega a ser uma prece, apenas uma comunhão com o universo. Os paus de incenso acendem, depois de alguma teimosia, e elevam os meus pensamentos no ar.
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Ruthia Portelinha