Carlos Semedo
FUTEBOL TOTAL
Gosto de um bom jogo de futebol. Não sou capaz de fazer quilómetros para ir a um estádio ver o “meu” Sporting, nem abdico de outras coisas que considero importantes, para ver um jogo. Apesar disso, o futebol tem-me garantido muitos momentos emocionantes e, algumas vezes, funciona como uma boa porta de entrada para outras conversas. Lembro-me, por exemplo, de estar em Stirling, num bar, ao final de tarde e ter sido o Souness que quebrou o gelo escocês relativamente a um forasteiro com algumas dificuldades relativamente ao sotaque. Era do Benfica, mas não fazia mal, cumpriu a sua função com brilhantismo e deu para duas horas e algumas cervejas de conversa. Serão milhões os que sabem onde fica Portugal, por causa de Ronaldo e também nunca me vou esquecer da experiência muito curiosa que foi estar com um amigo sportinguista, na bancada norte atrás da baliza do antigo estádio da Luz, num dia de chuva, rodeados de benfiquistas, num jogo no qual a sorte nos sorriu de forma dupla: ganhámos e soubemos que é possível conviver com gente normal, numa situação potencialmente adversa (1-3 a favor do meu clube).
Vem isto a propósito do turbilhão futebolístico que nos acossa, ao longo do ano, com promessa de jogos todos os dias para a temporada 2016-17 e especialmente quando há Campeonato do Mundo ou da Europa. O espaço público fica transformado num imenso relvado, as televisões dedicam ainda mais tempo à “filosofia” deste treinador, à postura daquela equipa e este ano até os mergulhadores foram chamados para salvar microfones. De repente, ficamos ainda mais sensibilizados com coisas como 4X4X2, 4X1X3X2 ou o mais afoito 4X3X3. Somos os maiores e, ao virar da esquina, passamos a desgraça total e há quem esteja no restaurante de t-shirt da selecção, com a mão no coração a entoar interiormente o hino nacional.
Repito que gosto de um bom jogo de futebol. E gosto que o Sporting e a nossa selecção ganhem, mesmo quando não jogam assim tão bem. Acontece que estou farto deste totalitarismo futebolístico, que arrasa com qualquer possibilidade de ecossistema no espaço público. Alimentada por uma suposta novidade, baseada nos confrontos sucessivos entre as diversas equipas e nas discussões intermináveis sobre o que passou e o que se vai passar, torna-se um espaço aparentemente cheio de vitalidade, mas que na verdade é um quase vazio, alimentado pelo lado emocional das pessoas. Quando se acaba a selecção nacional, há sempre uma outra preferida, ou um jogador que nos está mais próximo. Omnipresente, a publicidade explora este totalitarismo e amplia a confusão de mensagens. Estamos perante acumulação de informação que gera uma experiência errática, que inebria e ilude. Não é sequer um verdadeiro passatempo, pois esse ainda pressupõe uma experiência plena do tempo. Está porventura mais próxima do zapping permanente, do saltitar de imagem em imagem, de sonoridade em sonoridade. Pouco se pode apreender perante tanta informação e tanta invasão do nosso campo de percepção. Num certo sentido, é o levar a um certo extremo a experiência quotidiana de uma boa parte da sociedade contemporânea, dita desenvolvida. Sem tempo, procurando viver da forma mais acelerada possível, como se fosse possível ter as sete vidas de um gato na nossa efémera existência, comprimidas por acumulação.
Este pequeno texto tem o dedo de Byung-Chul Han, filósofo que vou lendo cada vez com maior interesse.