José Dias Pires
NO INÍCIO DE TODOS OS ANOS, O QUE VALEM AS PALAVRAS?
Com promessas de mudança, no início de todos os anos há palavras que são como as abelhas: capazes do mel e do ferrão.
Primeiro, rodeiam-nos com sorrisos, carícias e zumbidos musicais. Depois, vão pelo risco da abelha: deixam o seu ferrão dentro de nós e caem para o lado, inanimadas.
No início de todos os anos, o que valem as palavras dos discursos oficiais e oficiosos?
Antes de escritos (aos discursos e aos que discursam) é-lhes impossível adivinhar o efeito que terão nas pessoas, mas sabem o efeito que gostariam que tivessem.
E porquê?
— Porque acham que só as palavras são eternas, e capazes de fugir aos fantasmas e aos demónios para estar próximas da perfeição na certeza de que ela é inatingível.
E como?
— Ditas como quem respira (na sedução de um sopro carinhoso) ou deixa voar, através dos olhos, os sentimentos verdadeiros, mas que afinal não sente, apenas declama ou representa.
E para quê?
— Para fingir que se pergunta, mesmo sem fazer uma única pergunta que desafie a vida (que, sabem, nos vence sempre no fim).
— Para ter a aparência de uma braseira que aconchega o carvão em brasa e conforta os que nela procuram aconchego (mas pode matar por intoxicação).
— Para ser como a criança que pensa em duendes e acredita no Harry Potter, afirmando que existe o que todos sabem que não é.
Importa que tudo pareça e se projete em verdade, mesmo que seja fruto (apenas) da imaginação, como quem olha uma pedra ou escuta o vento, tentando adivinhar o que ela sente e para ouvir o que ele sopra.
Afinal o que valem as palavras que no início de todos os anos, em textos aparentemente diferentes, se repetem?
Será que servem para recordar (apenas) e ajudar a ver o futuro com olhos de sentir a memória, as memórias, a eternidade?
No início de todos os anos, alguns de nós são (apenas) como as formigas: capazes do trabalho e do amor, carregam (tantas) palavras que lhes limitam o sorriso, sem carícias.
Depois segue-se um ano inteiro do qual só fica a miragem do formigueiro: feito o trabalho, paira um vazio dentro de si e caem inanimados para o lado, sabendo bem, todos os finais de ano, o que as palavras valem.
Será que valem a mudança prometida?
Mudança é uma das palavras que mais me atrai e mais me incomoda.
Sou atraído pelo que representa de novidade, como nas palavras de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.”
Sou atraído pela sua bagagem de desassossego, de evolução e viagem a que se referia Fernando Pessoa numa carta a Adolfo Casais Monteiro: “Não evoluo, viajo”.
É boa a mudança quando sustentada em convicções porque, como escreveu Vicente Alexandre, “ Ser leal a si mesmo é a única maneira de conseguir ser leal aos outros.”
Incomoda-me profundamente a mudança porque sim, por convencimento, por conveniência, construída em jogos de cintura que transformam as colunas vertebrais em estruturas vermiformes.
Atrai-me a palavra mudança quando vem temperada de desafio e criatividade, traçando novos caminhos nos desertos que, por vezes, nos habitam.
Incomoda-me quando é uma palavra nascida nos Oásis de Talvez para subir as Montanhas de Vazio. Talvez porque lhe falta o perfume das coisas que descreve e, sem perfume a descrição fica-se apenas pela cor e pelo pitoresco. O pior é que estas Montanhas de Vazio (tão nossas, tão aqui) têm consubstanciado alguma da nossa desertificação dos últimos tempos: Valores, princípios e convicções e são o resultado dos que mudam (apenas) porque sim.
Como se não nos bastassem as outras, vivemos a angústia das palavras, no início de todos os anos.
Rodeiam-nos a vida de palavras: simpáticas, aparentemente acolhedoras, mas profundamente interesseiras. As palavras, elas mesmas, não têm a culpa. Estão ali e usam-nas. O pior é que nos usam com elas. Distraídos, até parece que as palavras nos servem sempre.
Puro engano: na maior parte das vezes as palavras servem-se de nós. Insidiosas, escorregam-se pelos poros dentro. Habilidosas, estranham-se, entranham-se e ficam. Ficam para gozar a nossa iliteracia angustiada das palavras cidadania, valores ou princípios. Ficam para nos aliciar com a facilidade que nasce das miragens. Ficam para nos adormecer com aroma colorido das promessas.
Desabituámo-nos, apenas por falta de prática, de saber o que valem as palavras, para a tranquilidade dos que não esqueceram o que as palavras valem, porque as treinam todos os dias.
Mas há ainda outras palavras que resistem todos os dias e rompem, devagarinho, as muralhas. São as palavras antigas: as palavras dos livros que já não lemos e das cartas que já não escrevemos.
Apenas por falta de prática?