Lopes Marcelo
HABITAR AS PALAVRAS
Mais de duas centenas de crónicas. Já quase duas décadas de encontros mensais com os leitores da Gazeta deste nosso interior, que tantas vezes criticamos e nem sempre sabemos valorizar o extraordinário mosaico regional de genuínos patrimónios, mas que amamos como sendo a região das nossa terras de origem ou de opção para vivermos. Por vezes questiono-me sobre a razões essenciais para continuar a alimentar este já longo rio de palavras. Como matriz base, procuro contribuir para a divulgação da nossa cultura e identidade no entorno da herança etnográfica recebida das gerações que nos antecederam e humanizaram esta nossa terra. Uma outra razão essencial é tentar habitar as palavras, propondo-as vivas e quentes de emoção e opinião, assumindo-me livre pensador e cidadão interveniente. Se por vezes, em relação à pimeira razão, nem sempre surge um tema relevante, o propósito de habitar as palavras é a força de ânimo que me tem permitido prosseguir e, como hoje, voltar à partilha com os leitores.
Vivendo as palavras, pode renascer-se mil vezes. Mil vezes mil, até se lhe perder a conta, acolhendo em íntimo sobressalto um olhar novo de deslumbramento perante as pessoas, as coisas, as situações, as paisagens e as próprias palavras. Um olhar que repare e se demore. Um olhar que questione, entenda e apreenda. Um olhar que acolha em ponte de diálogo.
No início da apredizagem de cada pessoa é a surpresa e o encantamento face às palavras, nomes que designam tudo o que nos rodeia. Abre-se, então, a pauta dos porquês ao fascínio da curiosidade e da ânsia em experimentar. Progressivamente, vai aumentando a surpresa gratificante, ora alvoroçada, ora serena, sempre íntima emoção desafiante e fecunda, gerando novos entendimentos e novas linguagens. É a vida a moldar-nos, a derramar-se em nós pelos princípios, regras, exemplos, sentimentos e valores, nas palavras que nos expressam, significam e acrescentam.
Há, também, o fascínio do progressivo conhecimento fabuloso da aventura da vida e do mundo que nos rodeia, que nos é revelado pela família, pela escola, pelos amigos e companheiros, nas leituras onde se pode soltar a imaginação, projectar-se o sonho e ser-se mais do que se é. Vai acontecendo habitarmos as palavras, saboreá-las e escolhê-las, vivendo-as.
Navega-se nas palavras pelos veios profundos e indeléveis da memória. Revisitam-se e partilham-se sonhos, projectos, desejos, conhecimentos, afectos, saberes e testemunhos de vida. Habitar a volúvel e infinita casa das palavras não significa acomodação, pois é sobretudo um lugar mais de perguntas e inquietações do que de respostas. As palavras são, essencialmente, a casa dos sonhos e dos projectos em diálogo com a vida. Conversas com a Mãe-Natureza na incrível diversidade dos seres vivos, em fabulosas viagens, imprevistos relacionamentos, inesperados encontros, renovadas emoções e afectuosos gestos e sentimentos. Na infinita e multicolor casa das palavras, todos têm lugar e tudo é possível na pluralidade e extraordinária abrangência da viagem.
Amamos as palavras ou, por necessidade, apenas nos habituamos a elas como uma segunda pele em que se expressa o apressado viver? Nas palavras gera-se a corrente de energia que alimenta o coração dos dias, expressa-se o mosaico dos afectos e revela-se o sol interior que aquece e sustenta a respiração solidária da vida.
Somos, valemos e permaneceremos não tanto pela grandeza ou espavento das moradas que construímos, mas, antes, pelo modo e o sentido com que as habitamos, as preenchemos e as partilhamos com as nossas amadas palavras e ternos afectos.
Acredito na força das palavras. As palavras podem ser aprisionadas, rodeadas de arame farpado e pela indiferença adiadas, amordaçadas e silenciadas, mas não vencidas e nunca negadas. As palavras são sujeito, predicado e complementos. São mesmo a oração completa da aventura da vida, berço dos valores e das ideias em energia desperta e partilhada. Vivam as palavras habitadas!