Edição nº 1626 - 19 de fevereiro de 2020

Lopes Marcelo
HABITAR AS PALAVRAS

Mais de duas centenas de crónicas. Já quase duas décadas de encontros mensais com os leitores da Gazeta deste nosso interior, que tantas vezes criticamos e nem sempre sabemos valorizar o extraordinário mosaico regional de genuínos patrimónios, mas que amamos como sendo a região das nossa terras de origem ou de opção para vivermos. Por vezes questiono-me sobre a razões essenciais para continuar a alimentar este já longo rio de palavras. Como matriz base, procuro contribuir para a divulgação da nossa cultura e identidade no entorno da herança etnográfica recebida das gerações que nos antecederam e humanizaram esta nossa terra. Uma outra razão essencial é tentar habitar as palavras, propondo-as vivas e quentes de emoção e opinião, assumindo-me livre pensador e cidadão interveniente. Se por vezes, em relação à pimeira razão, nem sempre surge um tema relevante, o propósito de habitar as palavras é a força de ânimo que me tem permitido prosseguir e, como hoje, voltar à partilha com os leitores.
Vivendo as palavras, pode renascer-se mil vezes. Mil vezes mil, até se lhe perder a conta, acolhendo em íntimo sobressalto um olhar novo de deslumbramento perante as pessoas, as coisas, as situações, as paisagens e as próprias palavras. Um olhar que repare e se demore. Um olhar que questione, entenda e apreenda. Um olhar que acolha em ponte de diálogo.
No início da apredizagem de cada pessoa é a surpresa e o encantamento face às palavras, nomes que designam tudo o que nos rodeia. Abre-se, então, a pauta dos porquês ao fascínio da curiosidade e da ânsia em experimentar. Progressivamente, vai aumentando a surpresa gratificante, ora alvoroçada, ora serena, sempre íntima emoção desafiante e fecunda, gerando novos entendimentos e novas linguagens. É a vida a moldar-nos, a derramar-se em nós pelos princípios, regras, exemplos, sentimentos e valores, nas palavras que nos expressam, significam e acrescentam.
Há, também, o fascínio do progressivo conhecimento fabuloso da aventura da vida e do mundo que nos rodeia, que nos é revelado pela família, pela escola, pelos amigos e companheiros, nas leituras onde se pode soltar a imaginação, projectar-se o sonho e ser-se mais do que se é. Vai acontecendo habitarmos as palavras, saboreá-las e escolhê-las, vivendo-as.
Navega-se nas palavras pelos veios profundos e indeléveis da memória. Revisitam-se e partilham-se sonhos, projectos, desejos, conhecimentos, afectos, saberes e testemunhos de vida. Habitar a volúvel e infinita casa das palavras não significa acomodação, pois é sobretudo um lugar mais de perguntas e inquietações do que de respostas. As palavras são, essencialmente, a casa dos sonhos e dos projectos em diálogo com a vida. Conversas com a Mãe-Natureza na incrível diversidade dos seres vivos, em fabulosas viagens, imprevistos relacionamentos, inesperados encontros, renovadas emoções e afectuosos gestos e sentimentos. Na infinita e multicolor casa das palavras, todos têm lugar e tudo é possível na pluralidade e extraordinária abrangência da viagem.
Amamos as palavras ou, por necessidade, apenas nos habituamos a elas como uma segunda pele em que se expressa o apressado viver? Nas palavras gera-se a corrente de energia que alimenta o coração dos dias, expressa-se o mosaico dos afectos e revela-se o sol interior que aquece e sustenta a respiração solidária da vida.
Somos, valemos e permaneceremos não tanto pela grandeza ou espavento das moradas que construímos, mas, antes, pelo modo e o sentido com que as habitamos, as preenchemos e as partilhamos com as nossas amadas palavras e ternos afectos.
Acredito na força das palavras. As palavras podem ser aprisionadas, rodeadas de arame farpado e pela indiferença adiadas, amordaçadas e silenciadas, mas não vencidas e nunca negadas. As palavras são sujeito, predicado e complementos. São mesmo a oração completa da aventura da vida, berço dos valores e das ideias em energia desperta e partilhada. Vivam as palavras habitadas!

19/02/2020
 

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