Carlos Semedo
INTERMITÊNCIAS
A pandemia trouxe à tona deste mar revolto, a situação dos chamados trabalhadores intermitentes na esfera da produção e difusão artística. É um tema com pelo menos três décadas de discussão acesa, com momentos de maior intensidade, como foi na recente crise, a partir de 2008, e outros, de ilusória invisibilidade, geralmente quando a dinâmica de programação, um pouco por todo o país, permite que os diversos profissionais se desdobrem em múltiplas respostas.
Esta realidade colocou sempre imensas dificuldades à estabilização de equipas artísticas e técnicas e apenas algumas estruturas conseguiram as condições mínimas para desenvolver o seu trabalho de forma consolidada. Creio que é consensual que há na criação artística e nas suas formas de produção e difusão, uma necessidade de reinvenção, de ruptura, de provocação que tornam impossível uma prática que tenda para uma homogeneização. Com a explosão de projectos, criadores, festivais e programação que se verificou nos últimos anos, esse carácter fragmentado em termos de percepção, aumentou de forma avassaladora. No meu trabalho de programador, nunca recebi tantas propostas como nos últimos 5 ou 6 anos. Este crescimento não se baseou na mudança de paradigma no que respeita às condições de trabalho e estabilidade dos artistas e técnicos, antes pelo contrário. Acentuou-se ainda mais esta relação atómica com as propostas, colocando o país da criação artística a trabalhar em diversos patamares de estabilidade só conciliáveis com muita boa vontade por parte de todos os agentes.
A minha leitura é a de que ainda não soubemos ultrapassar um atávico atraso relativamente à percepção da importância da produção artística para a construção de uma identidade, seja ela pessoal ou colectiva. A utilização sempre ambígua da palavra Cultura, presta-se a uma dispersão de significados e leituras, que acaba por baralhar completamente a análise do que se passa. Um bom exemplo é o jogo de tensões entre entretenimento e os objectos que escapam a essa denominação através de uma complexa teia de elementos que os tornam interrogativos do próprio mundo contemporâneo, na sua relação com o passado e futuro. Estas tensões desaguam, por vezes, na fórmula do lazer como o tempo para a fruição cultural. Esta visão, herdeira da dicotomia tempo de trabalho, tempo livre, é das mais redutoras e aflitivas visões da forma como vivemos em pleno séc. XXI.
Como essa construção de identidade ainda não é valorizada pela maior parte da sociedade de uma forma consciente – leia-se também sentida - e informada, o problema da intermitência do trabalho de artistas e técnicos, acaba por ser olhado com alguma desconfiança, resultado do desconhecimento e da falta de empatia.
Embora este tempo seja um momento conturbado para quase todos os sectores das sociedades contemporâneas, é muito importante o trabalho que se está a fazer de dar visibilidade à situação de absoluta precariedade de muitos dos que dão corpo a iniciativas das mais diversas áreas artísticas. Contudo, a visibilidade nunca será suficiente. Para alterar algo de forma substantiva a acção deve ser tão centrada na pressão junto do poder político (na dimensão governativa nacional e local) como acompanhada por um trabalho de afirmação e credibilização dos diversos sectores envolvidos. Falo dos técnicos, dos artistas, dos programadores e outros mediadores. A ferramenta essencial aqui parece ser o diálogo, o pensar colectivo, a promoção de interlocutores que sejam voz dos problemas sentidos. Nesta direcção, os últimos tempos têm sido particularmente exaltantes. O desafio é continuar este caminho de forma consistente, quando uma nova realidade se instalar.