Maria de Lurdes Gouveia Barata
A PENSAR NO TEMPO…
À primeira vista, cada um sentirá de modo diverso a expressão A PENSAR NO TEMPO… O imaginário leva-nos a diferentes sentidos: pensar no tempo actual, um tempo de vírus que alterou as nossas vidas, alteração que nos traz já uma certa saudade de um tempo recente anterior, em que a alegria e o prazer de encontros, de abraços, de beijos, de viagens, ofereciam convívio natural entre humanos ao longo do tempo. Instalou-se o medo, a desconfiança, o afastamento mesmo dos mais chegados por laços familiares ou de amizade, receios que nunca passariam pela cabeça de qualquer um. Divulgaram-se vídeos de outras epidemias ou pandemias, de que ouvimos falar, pondo-nos a imaginar os confinados daquele tempo, sem telemóveis, sem televisão, sem os meios que o desenvolvimento tecnológico hoje nos proporciona.
Um outro sentido da expressão leva-nos a um tempo meteorológico que, no momento em que escrevo está chuvoso, carrancudo, pouco dado a passeios e saídas. E A PENSAR NO TEMPO meteorológico vem de novo o nosso tempo com outro receio: o das alterações climáticas, em que alguns, imprudente e inconscientemente, não acreditam que venham eivadas dum perigo sério para a humanidade. É só observar os fenómenos extremos que até se verificam em pleno Verão, o derretimento do gelo nos polos, que é assustador, é só ouvir os cientistas que estudam o problema. Mas há quem não acredite como o famigerado Donald Trump (que agora – suspiremos de alívio – vamos ver pelas costas) que assevera sempre ter havido furacões, sem atender a violência diferente e mais frequente.
E já que veio à baila a figura tenebrosa deste presidente, A PENSAR NO TEMPO pode levar-nos a um tempo de vivência política, na tangência dum perigo de guerra, na obsessão de ganâncias materiais de lucros fáceis, de linhas de corrupção em prol de interesses próprios, conforme os governantes. A pensar no tempo conduz-nos ao questionamento dum século XXI com a existência de racismo, da crueldade humana – os homens do planeta Terra (que é um ponto quase imperceptível no universo) digladiam-se em ódios com ataques terroristas, confrontam-se em fanatismos que são veneno de intolerância perante o outro de crença diferente.
Atrás de tempo, tempo vem? Para o bem da humanidade e para o bem de cada povo não serve a espera nos tempos que correm, em que não se pode dar tempo ao tempo, porque este tempo está sob pressão de urgências e cada um de nós não pode ir com o tempo, ou seja, não pode acomodar-se e transigir nestas circunstâncias.
A PENSAR NO TEMPO de trabalho, obrigações e compromissos – hoje com cautelas especiais, estremecimentos e receios – leva-nos a pensar no tempo da diversão e da formação também, preenchendo os espaços de tempo livre com espectáculos, concertos, exposições e muitas outras manifestações culturais, que no âmbito cultural representam igualmente o tempo do trabalho para os agentes que o concretizam. Pensamos como essa época de passado ainda tão próximo se inscreve em tempo áureo da actividade humana, agora tão limitada, se não cerceada, pelo vírus.
A PENSAR NO TEMPO pode ainda remeter-nos para um fundo da consciência de nós próprios enleados nos fios duma efemeridade que é a nossa existência. O homem é um ser de tempo na sua caminhada para a morte. Filósofos e poetas referem o tempo imparável da nossa vida, que terá um limite. Miguel Torga fala dum tempo apocalíptico por isso mesmo. No poema «Apocalipse» (Câmara Ardente) os dois primeiros versos dizem bem da passagem rápida do homem: «É o cavalo do tempo a galopar… / Ninguém pode detê-lo.». Camões (de que transcrevo a primeira quadra dum soneto) regista os limites que o tempo impõe: «O tempo acaba o ano, o mês e a hora, / A força, a arte, a manha, a fortaleza; / O tempo acaba a fama e a riqueza, / O tempo o mesmo tempo de si chora;». Carlos de Oliveira, no poema «Tempo» (Colheita Perdida) aponta essa transitoriedade na primeira estância do poema: «O tempo é um velho corvo / de olhos turvos, cinzentos. / Bebe a luz destes dias só dum sorvo / como as corujas o azeite / dos lampadários bentos.» Ainda o registo dos dois primeiros versos do poema «Não tarda nada sermos» (Odes) de Ricardo Reis: «Breve o dia, breve o ano, breve tudo. / Não tarda nada sermos.». Também Torga fala, na parte final do poema referido, e sempre ancorado na metáfora de cavalo para designar o tempo, duma corrida desenfreada para o nada: « Besta infernal, / Com asas de morcego / E raiva desbocada, / Largou do prado onde pastava ausente, / E corre, corre, em direcção ao nada, /Única direcção que a fúria lhe consente.».
Fica um amargor. Mas não é para alimentá-lo. Respondo aos apelos de Torga ao longo da sua obra e àquilo em que ele acreditava: apesar dessa realidade, enquanto se vive num aqui e num agora, há que viver com alegria e apaixonadamente. Teimosamente.