Edição nº 1858 - 28 de agosto de 2024

Maria de Lurdes Gouveia Barata
UM VERÃO DO MEU DESCONTENTAMENTO

OS DIAS DE VERÃO
Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade

Justa é a forma do nosso corpo
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, DUAL

Começo com um poema que reflecte características do Verão que sempre foi objecto da pena de escritores e poetas, podendo acrescentar cientistas de várias áreas, cada um com objectivos diferentes. Sophia regista os dias grandes, os dias do mar, os dias de férias e alegria, pelo repouso e pela festa. Na segunda estância, o presente é o instante, que tem a plenitude de um fruto, irmanando o próprio corpo no universo. Esses instantes vividos tornam o destino próximo e legível na largueza de um firmamento (alto enigma) com astros familiares condutores desse destino – viver o instante segue o optimismo de um sempre que é a eternidade, a que se enlaça o corpo como ser físico e espiritual – irmão do universo é nosso corpo (7º verso); justa é a forma do nosso corpo (último verso).
Este primeiro poema pode sugerir uma antinomia relativamente ao título: regista um Verão de contentamento, vivido com paz e harmonia, conquanto outros escritores assinalem a dureza da estação. Já disse inúmeras vezes que sou mulher de Verão. Agora não digo isso com o mesmo à vontade. O Verão tornou-se demasiado incomodativo de calor e secura durante muitos dias, um excesso, mesmo considerando que Castelo Branco sempre foi terra muito quente do interior. Mas desde o ano anterior exacerbou-se de tal modo a alta temperatura, que chego a experimentar um sentimento de nostalgia do Inverno. Eu nunca me dei bem com o frio. Lembro-me de dizer, quando estudante de liceu, ainda no tempo da ditadura (e os estudantes também eram vigiados e incomodados), que, se um dia eu fosse apanhada pela PIDE e me fizessem uma tortura do frio, eu contava tudo o que soubesse. E as minhas amigas riam comigo. Enfim, eu era amante do Verão, do calor, amante dos dias descuidados de férias, amante do mar, dos rios, dos lagos – sentia-me bem onde houvesse muita água. Pois este Verão começou a apossar-se disforicamente de mim por um cansaço e prostração, que me levam de imediato a evocar João de Araújo Correia, quando fala do Verão em Trás-os-Montes (Três Meses de Inferno). Se a memória não me engana, já fiz o extracto noutro artigo e, apesar do risco de me repetir, vou fazer excerto desse extracto: «O Verão em Trás-os-Montes é sinónimo de Inferno. (…). Pero Botelho redobra de malícia. Ferve e referve coisas e pessoas. § Com este calor, o fígado entumece, o apetite foge, o cérebro dormita. Parece que o mundo das ideias, das lembranças, o divertido mundo do conhecimento, parou dentro do crânio. Não se lê uma linha, não se escreve palavra nem cogita assunto. Golilhas de ferro em brasa, movidas por diabinhos, algemam os pulsos (…)».
Se o Verão era assim, agora é pior. São dias e dias irrespiráveis (que começam ainda na Primavera, em Maio e Junho), há permanência prolongada das golilhas de ferro em brasa, movidas por diabinhos. Pablo Neruda em «Ode ao Verão» apresenta como 1º verso: «Verão, violino vermelho». A imagem traz uma ideia de algo quente, vermelho é a cor do elemento fogo, evoca o sangue, o coração humano, o poder, mas também o perigo. Hoje, este verso «violino vermelho» dimensiona-se no tempo diferente da escrita e preenche-nos o pensamento com calamidades de incêndios que proliferam em todo o mundo. E conferem-se as alterações climáticas. Disse Miguel Esteves Cardoso numa crónica de 2011 (Jornal Público) que «o frio torna as paisagens mais nítidas. O calor esborrata-as». Os incêndios, por exemplo, são borrões na paisagem. As tempestades varrem a Terra e aqueles que não acreditavam (ou não lhes convinha acreditar) estão com o panorama catastrófico à vista. «A mãe natureza está levantando a voz de forma mais poderosa do que jamais vimos na história», disse Al Gore, que chamava a atenção para os “eventos climáticos extremos mais destrutivos e mais frequentes”.
Voltando à ode de Neruda, já referida, selecciono alguns versos, com os cortes que acho adequados: «(…) sol / demoníaco, sol terrível e paterno, / suado / (…) sol da sede / que faz o caminhar / pela areia (…). A palavra paterno reafirma o sol, apesar de ofensivo do bem estar, como fonte de vida. E enfatizo a expressão sol da sede que chama outras realidades e lembra o soneto «Árvores do Alentejo» de Florbela Espanca: «(…) A planície é um brasido… e, torturadas, / As árvores sangrentas, revoltadas, / Gritam a Deus a bênção duma fonte! (…). A sede pode transformar-se metaforicamente num desejo de Bem e numa ânsia de Harmonia (Florbela faz essa transposição: «Árvores! Não choreis! Olhai e vede: / - Também ando a gritar, morta de sede, / Pedindo a Deus a minha gota de água!»).
Transcrevo ainda da longa «Ode ao Verão» de Neruda dois versos que me puxam para outro quadro de preocupações, que associo a um calor extremo de Verão: « (…) caldeira / de cobre abrasado, (…)»: as guerras com outro tipo de calor no auge, de que saliento duas (para exemplo) – a da Rússia / Ucrânia e ado do Médio Oriente.
E aqui termino (sem ter terminado) este artigo, «UM VERÃO DO MEU DESCONTENTAMENTO». Quiçá um Verão do descontentamento de muitos, do vosso, do nosso.
Não obstante, olho como amante o sol num céu azul parecendo-me os dias dourados numa compensação de Beleza com o sussurro do mar longe…

28/08/2024
 

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