Joaquim Bispo
UM BURACO ESCURO
Nunca foi apurado de onde partiu o primeiro disparo. As potências em conflito acusaram-se mutuamente, enquanto foi possível ouvir rádio. Só se percebeu que, em poucas horas, foram disparados alguns milhares de mísseis regionais e intercontinentais, portadores de bombas nucleares, de um lado e do outro do Atlântico. A maior parte foi travada pelos sistemas de interceção, mas as explosões aconteceram na mesma, só que em altitude. À medida que os satélites adstritos ao uso militar foram sendo derrubados, os mísseis passaram a usar sistemas de navegação incorporados, o que lhes baixou sensivelmente o grau de precisão.
Havia semanas que Eneias punha a eventualidade da guerra nuclear como muito possível. Percebia os apelos armamentistas, a retórica de confronto, a escalada bélica em crescendo. Quando o clarão apocalíptico acendeu o dia, estavam na casa de Silvares.
As notícias, das poucas rádios em funcionamento, eram alarmantes. Boa parte do leste dos Estados Unidos tinha sido destruída, assim como todo o ocidente da Rússia e variadas zonas no resto da Europa. Milhões de toneladas de cinzas radioativas subiam na atmosfera e toldavam o sol. Eram horríveis os relatos das destruições e do estado dos corpos dos que ainda sobreviviam.
Uma obscuridade estranha foi crescendo até transformar-se numa escuridão densa, que se tornaria a companheira diária. Ainda nessa tarde começou a cair muita cinza; radioativa, provavelmente. Tinha um cheiro fétido, um misto de plástico queimado, com reverberações olfativas metálicas. Eneias tinha consciência de que cada inalação que permitisse representava um foco de radiações a destruir o seu ADN, a facilitar cancros. A temperatura baixara abruptamente e todos os dias foi baixando mais. Juntaram a lareira aos aquecedores, mas nada conseguia aquecer a casa.
As poucas notícias da rádio descreviam um mundo caótico. Um pouco por todos os continentes, os saques, o morticínio de grupos demonizados, os levantamentos militares, as revoltas populares estraçalhavam o que restara. Regimes oportunistas de todos os quadrantes surgiam e desapareciam no mesmo dia. A energia elétrica faltou de vez ao fim de três dias. Nem o rádio de pilhas dava sinal. A sociedade desmoronava-se.
A casa já não era porto seguro. As cinzas tomavam tudo. Não era possível colher vegetais enegrecidos e “queimados” pela radiação, não era aconselhável consumir qualquer animal, qualquer ser exposto às cinzas. Viviam de conservas. O frio tornava-se debilitante. O “Inverno nuclear”, teorizado pelos cientistas, confirmava-se. Sem luz solar, as plantas iriam mirrando e a maior parte morreria em poucas semanas ou meses. E a morte das plantas faria ruir toda a cadeia alimentar. Havia que engendrar uma maneira de sobreviver. E ousar partir para melhor refúgio.
Foi a proximidade das minas da Panasqueira que iluminou o espírito de Eneias. A temperatura em minas é baixa, mas constante. Lá não chegariam poeiras radioativas, lá poderiam captar água não contaminada, lá poderiam cultivar cogumelos.
Passaram seis anos desde que Eneias chegou às minas. A comunidade de uns cem refugiados que lá foi procurando refúgio passou a chamar-lhe Lote, por ter chegado com duas filhas, depois de um bombardeamento, como no episódio bíblico.
Havia quatro fontes nas galerias da mina. Tinham esperança que os fios de água demorassem uns anos a chegar contaminados. A cultura de cogumelos era um êxito. Desenvolviam-se bem em regime de ausência de luz solar, eram proteicos e havia quem lhes encontrasse nuances de sabor. A comunidade decrescia, apesar de as raparigas e algumas mulheres terem tido crianças, no entanto, buscavam um equilíbrio. Não podiam deixar morrer a esperança.
Nas muitas horas que a pequena comunidade se junta em círculo à volta de uma chama, embrulhada em cobertores, em quase escuridão, lá surgem dúvidas, lamentos, especulações, desalentos. A princípio Lote respondia por parábolas, que muitos achavam sábias, mas com o tempo tudo lhe parece irrelevante. Baixa a cabeça, calado. A meditação de cada um começa então a divergir da de cada um dos outros, talvez a lembrar o que perdeu, mas também a vislumbrar futuros viáveis, para quando cada homem e mulher aspire a mais do que só sobreviver outro dia.