Paulo Samuel
RAGA – A POESIA DE JOSÉ GUARDADO MOREIRA
Raga, de José Guardado Moreira, foi apresentado, na Livraria Caixotim.
Singelo volume de 64 páginas, nele apenas se imprime (sem ilustrações, prefácios ou notas) a palavra poética do autor albicastrense. Com formação académica em Antropologia, o autor tem apreciável colaboração em prosa (incluindo crítica literária) em jornais e revistas de especialidade. Com mais de uma dezena de livros de poesia, a sua escrita estende-se também à ficção, ao teatro e ao ensaio. Reservado, com raro surgimento no espaço público e menos ainda no mediático, José Guardado Moreira é um nome a reter na poesia portuguesa. Que revela de original, ou revestido de inusitados cromatismos e vibrações, este livrinho que vem a público com a chancela RVJ-Editores? Talvez espanto, para quem não estiver sintonizado com a matéria-prima que enforma a criação poética de José Guardado Moreira. Trata-se de uma poesia que não se quadra numa tipologia de tendências literárias, muito menos modais, ou fruto da reverberação do insidioso ruído dos dias. Tão-pouco é um manifesto incisivo contra a vertigem caótica em que parece naufragar o devir, débil recurso face à senda dolorosa com que lida a Humanidade. Este livro, quanto a nós, não pode ser lido no plano lúdico de quem lê um texto de ficção, ou no plano didáctico inerente a um romance histórico escrito à luz dos enquadramentos ditados pela História e pelas convenções. Também a reflexão e o encadeamento das ideias que exigem os livros de ensaio serão por si só insuficientes para apreender, descodificar e salmodiar, em canto universal, quanto do que nestas páginas se escreve, em poesia, a desocultar «a luz interior promessa do atemporal».
“Raga”, na tradição hindu, não é apenas um conceito de sequência melódica, num diapasão alternado de notas que ora se expandem ora se contraem (em transposição visual, o pneuma vital da Criação, que organiza e harmoniza o Universo e a matéria), mas um caminho de elevação mental, que permite a harmonização dos contrários, superando-os. Importa ter presente que, no mundo ocidental, não é estranha a noção de servir a música para se alcançar um elevado estado de sublimação – como meio privilegiado de expansão espiritual – o que desde a Média Idade se cultivou com diferentes cambiantes e propósitos.
Todos podem, melhor, todos devem ler este novo registo poético de José Guardado Moreira. Cada um, conforme o entendimento que tiver, alcançará um patamar de percepção, compreensão e experienciação pessoal, que pode dilatar-se desde a interpretação literária até à mais exigente observação participada, isto é, colocar-se o leitor no próprio âmago da criação do autor, sabendo que este se reveste de uma função demiúrgica. Também ele é um “mensageiro”, símile da figura que o personifica (não enquanto “personalidade” antes como personna) num poema donde se extraem estes versos: «Quando o mensageiro/chega dentro da morada/a luz oculta no manto/brilha para sempre/no fulgor do coração.»
Se, no poetar de António Salvado, se pode aceder, quase no imediato, à aura luminosa de grande parte da sua poesia, reconhecendo a marca da presença dos autores clássicos, em particular dos nomes referenciais da Hélade, assim como a matriz cristã da sua formação como homo religiosus, em José Guardado Moreira figura-se-nos que a luz que dimana dos seus poemas radica numa ancestralidade anterior e primogénita, heterodoxa, que explica a Criação por um Demiurgo e mantém vivo o legado, que permanece atendido pelos cultos mistéricos. De resto, não é estranha em Raga a transposição imagética, feita poema, para o contexto da obra ao negro… Embora noutros títulos do seu labor poético esses níveis já estejam de algum modo presentes ou implícitos, em gradações diferentes, Raga é, enquanto pauta de sublimação da palavra, o pórtico que permite recuperar a matriz original que lhe é própria, capaz de “criar” o real, que não se confina ao simples esboço de realidade que a apoucou, ou “coisificou”, no uso comum e banal que a reduziu a mero instrumento de comunicação.
Não é esta nótula adequada para se desenvolver uma problemática tão candente e funda como a da relação de alguma significativa poesia portuguesa com esta ordem de noções (de Herberto Helder a António Barahona, passando por Yvette Centeno, Francisco Palma Dias, António Cândido Franco, Paulo Borges, entre outros), o que, na apresentação do livro, ainda se conseguiu esboçar, suscitando o interesse do público presente, que foi bastante. Nem o que se está a insinuar vincula o Poeta ou subtrai outras congeminações que podem ser feitas por quem aprofunde a leitura de Raga.
Escrito no fluir do tempo em terra templária, retomando versos de anteriores criações poéticas do autor, Raga sussurra ao leitor que «só o desconhecido liberta», e «a porta não se abre/quando os sentidos/preferem as sombras». De Rá a Raga, brilha a Luz para quem a quiser (ou puder) seguir…