Maria de Lurdes Barata
OUTRO SETEMBRO…

(…)
Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
Miguel Torga, «Dies Irae«, Cântico do Homem (1950)
Este poema torguiano veio a lume numa época sob ditadura, mas sem dúvida dá também expressão a este nosso tempo de angústia e de uma vida que não temos, porque tem sido progressivamente ameaçada pela falta de paz, pela falta de estabilidade e em muitos casos, mesmo muitos, pela carência de necessidades básicas. O que mais aflige os portugueses é a falência de esperança num futuro mais risonho.
Voltou Setembro, o trabalho, o ano lectivo que sempre animou as urbes com o galrear dos mais pequenos, os sorrisos dos adolescentes, os namoradinhos de mão dada, os olhares cintilantes de um regresso. Setembro foi sempre a brisa de um recomeço depois de beber o sol do mar ou do campo no relaxamento dos dias longos que se incendeiam de poentes tardios. Mas este Setembro não permite sentir alegremente o regresso. Apercebi-me mais quando entrei em livrarias, que por esta altura abarrotavam de pais adquirindo os livros necessários para a escola, e, perante a rapidez do atendimento devido a poucos clientes, um vendedor comentou: «este ano é isto, encomendaram os livros e não vêm buscá-los e já avisei que chegaram». É a degradação da qualidade de vida por causa da impossibilidade de assumir compromissos na data combinada.
Setembro está quente, com um sol que dardeja agressivo acima dos 30º. Setembro está quente de febril na interpelação do que vem aí de mais despedimentos, de mais cortes, de mais desânimo. Setembro queima na continuidade do azedume das discussões que atiraram os portugueses contra os portugueses, que eles-governo até isso conseguiram: os trabalhadores do privado contra os funcionários públicos, os novos contra os mais velhos, propalando-se o peso dos reformados, até apelidados por um imbecil como «peste grisalha» (vamos ver se não chega o tempo de um velho tornar a subir a montanha com uma manta para lá ser deixado morrer por ser considerado inútil…), a desfaçatez da guerra do ensino privado contra a escola pública (e é guerra, sim, porque se transformou em luta por conquista de território).
Todavia, no calor meteorológico e psicológico deste Setembro insinuam-se frios gelados do medo, que também tomou conta dos portugueses. O medo domina a vontade não exteriorizada da revolta e da rebeldia, porque sabe-se lá se em situação de despedimento não começam pelos mais incomodativos, o medo de um futuro que se torna negro sem aceno de mudança para melhor, o medo de uma miséria envergonhada, o medo de dizer como aquela senhora há uns meses assumiu diante das câmaras televisivas: eu era das que contribuía para o Banco Alimentar, agora sou eu que preciso de cá vir ; o medo instalado pela inevitabilidade desta situação, que os governantes têm repetido e repetido para lavar o cérebro dos ouvintes mais incautos e mais crédulos. Mais grave: o conformismo de alguns em que a manipulação mental foi semente que deu colheita, aceitando-se a predestinação de se ser senhor ou servo da gleba, de ser natural os muito ricos e os muito pobres, de os pobres deverem trabalhar ou não trabalhar, se isso convier aos que já têm milhões e não podem sofrer qualquer perda. É o medo que traz o conformismo, mesmo que seja um conformismo de aparência, com grande revolta interior, uma revolta que não se atreve a passar para uma rebeldia em acção.
Quantos destes setembros nos esperam ainda?