Carlos Semedo
Ferrovia

Nos anos oitenta do século passado uma das formas mais acessíveis de conhecer a Europa era o Inter-Rail, bilhete que garantia o usufruto de grande parte da rede ferroviária de muitos países, do Mediterrâneo à Escandinávia, incluindo Istambul e, não se surpreendam, algumas passagens marítimas. Foi o meu caso. Devo a esse bilhete a oportunidade de conhecer de forma aprofundada cidades como Veneza, Atenas, Budapeste, Paris, Roma, Berlim, Dubrovnik, entre muitas outras.
Foi também nessa época que aprendi sobre as enormes virtualidades do caminho-de-ferro no plano da sua relação com o elemento natural e as possibilidades de interacção social nas viagens. Já nessa época se percebia quais eram os países que investiam de uma forma estruturada na ferrovia. A França era, para mim, o melhor exemplo. Todavia olhava para Portugal e até me admirava como é que um país tão pequeno e com tantos problemas tinha uma rede bastante aceitável, no que respeita à cobertura territorial. Foi assim, pode-se dizer que por amor à ferrovia, que tudo fiz para conhecer todos os quilómetros, de Norte a Sul.
Infelizmente, muitas dessas linhas estão hoje inactivas, desmanteladas e mesmo investimentos assumidos como estruturantes nunca foram substanciados. O caso mais flagrante é o da Linha do Norte (Lisboa-Porto), hoje ainda em obras de beneficiação, impossibilitando os comboios pendulares de usarem todo o seu potencial. No início da década de noventa já o Alfa abrandava por causa destas mesmas obras.
Dos casos mais recentes, destaco a aniquilação definitiva da Linha do Tua, que conheci muito bem, pois viajei de forma regular do Porto a Tua e daí até Mirandela. Tratava-se de uma das mais belas viagens da ferrovia portuguesa e só mesmo uma enorme falta de visão pôde conduzir à sua destruição. Mas há muitas outras situações, igualmente graves: a linha de ligação da Covilhã à Guarda, alvo de obras de beneficiação, está hoje inactiva inviabilizando uma ligação útil em termos de cobertura territorial, com a agravante de terem sido investidos milhões na sua recuperação. Outro exemplo é a alteração do perfil do material circulante e de tracção, no Intercidades Covilhã –Lisboa. Como é possível defender que a solução actual é igualmente cómoda? Só mesmo quem nunca andou de comboio ou de quem quer acabar com a linha a médio prazo. Será que é isso que está nos horizontes de quem decide?
Entretanto, numa outra Europa igualmente em crise e mesmo aqui ao lado, investe-se estrategicamente na ferrovia, tanto nas linhas regionais como nas de alta velocidade e nas ligações a França ou seja, ao resto da Europa. Nós, portugueses, discutimos displicentemente, durante anos, o TGV nas suas mais diversas possibilidades geométricas, com equipas de estudo e diagnóstico, enquanto vai fechando o pouco que já resta de uma rede que foi quase exemplar.