Oliveira Martins
«UM OLHAR À NOSSA VOLTA»
«Um Olhar à Nossa Volta» de António Alçada Baptista (Presença, 2002) é um conjunto de crónicas publicadas na imprensa entre 1976 e 1985 nas quais o escritor comenta o curso do tempo, dando-nos uma leitura pessoal que à distância revela premonições e um sentido crítico que não perderam atualidade e merecem revisitação atenta. Recordamo-las quando se comemoram os 70 anos do CNC e os 50 anos da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias.
António Alçada Baptista (AAB) afirma que «durante o antigo regime» procurou «dar alguma contribuição à luta pela instauração da liberdade em Portugal e hoje já é possível reparar que não tinha qualquer projeto de (se) ligar ao poder e que a única coisa que (lhe) interessava era a liberdade dos portugueses, talvez por ter consciência da importância da (sua) própria liberdade». Para o escritor foi sempre a liberdade o valor fundamental que importava preservar, por ser indispensável «à dignidade da vida e ao progresso humano». O certo é que eram os princípios que estavam em causa, e nessa medida lembra as atitudes de quantos no fragor da luta se acobardaram ou de quantos, quando os ventos viraram, mudavam de passeio para o evitar, contrastando com o exemplo de José Gomes Ferreira que manteve a mesma hombridade, independentemente das conveniências… AAB foi sempre uma personalidade generosa e com um apurado sentido autocrítico: «Tenho de reconhecer que eu próprio fui uma pessoa de grande má consciência, possivelmente por causa da minha formação cristã e por nunca ter tido fome e ver à minha volta muitas pessoas que a tinham. Tudo o que a gente lia, tudo o que nos diziam sobre a vida, tudo nos atribuía, a nós burgueses, a responsabilidade de um mundo injusto. Acresce que, estando no início desta sociedade “virtual”, em que as teorias e os pensamentos tomavam maior importância do que a realidade, resolvíamos melhor os nossos problemas de consciência através de uma opção ideológica do que através de um compromisso concreto de ajudas aos mais necessitados». E lembra uma conversa com David Mourão-Ferreira, ainda no tempo da faculdade, em que ele, AAB, defendia a necessidade do compromisso da arte na alteração das estruturas sociais – enquanto o seu interlocutor «defendia a independência da arte, que não devia estar comprometida senão consigo própria»… E não devemos esquecer que «o homem do ressentimento deixou de procurar justificar, compreender e realizar o seu dever e a sua vida em função de valores positivos como a beleza, a liberdade, o puro exercício do ser e da vida». Por isso, recorda Fernando Oneto como alguém que reconheceu e viveu a importância «de reconstruir a vida de todos nós sem ressentimento nem inveja mas com amizade e alegria». Do mesmo modo, lembra a qualidade humana de Adelino Amaro da Costa: «a sua falta não é só a de um político inteligente: é um vazio mais dificilmente superável: é o vazio de um ideário e duma razão de viver».
Importa recordar o texto em que AAB lembra Pierre Emmanuel (1916-1984), «muito possivelmente o intelectual estrangeiro que (…) mais se interessou pela situação dos intelectuais portugueses antes de Abril de 1974». Poeta prestigiado, membro da Academia Francesa, participante da Resistência durante a Guerra, próximo da revista «Esprit», foi Presidente da Associação Internacional para a Liberdade da Cultura, tendo pedido a AAB que organizasse em Portugal em 1965 a Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias. O fundador de «O Tempo e o Modo» convidou então para fazerem parte do corpo consultor: Adérito Sedas Nunes, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra, Nuno de Bragança, João Bénard da Costa, Maria de Lourdes Belchior, Rui Grácio, Nuno Teotónio Pereira, João de Freitas Branco, José Palla e Carmo e o Padre Manuel Antunes. Este núcleo procurou animar a reflexão crítica com intelectuais portugueses dos mais diversos quadrantes políticos e ideológicos, reunindo mensalmente durante cerca de oito anos e administrando o que foi uma ajuda global de cerca de três mil contos… Coube ao CNC, em parte significativa, através do secretariado executivo de João Bénard da Costa, concretizar esse projeto. «Com esse dinheiro concederam-se bolsas de estudo, bolsas de viagem, subsídios a edições, a revistas, a cooperativas de ação cultural, a grupos de teatro, a individualidades a braços com projetos culturais que necessitavam de apoio. Igualmente, através da Comissão, vários intelectuais portugueses puderam tomar parte em reuniões, seminários e certames de carácter cultural a que de outro modo não poderiam assistir». É digno de nota esse trabalho, sobretudo porque correspondeu a um período decisivo na preparação da transição democrática. Pode dizer-se que, se analisarmos o papel que todos tiveram na consolidação democrática, a Comissão Portuguesa foi um alfobre intelectual empenhado no desenvolvimento da liberdade da cultura e do pluralismo de ideias como fatores essenciais no lançamento das bases do regime constitucional. E AAB recorda ainda um momento difícil na vida da Associação Internacional, quando se descobriu que uma das fundações americanas que subsidiavam a organização estava infiltrada pela CIA. Vivia-se então o auge da guerra fria. Homem íntegro, democrata com provas dadas na provação do «maquis» em França, Pierre Emmanuel veio a Portugal explicar a situação, receoso de que a confiança que nele era depositada estivesse posta em causa. Para seu conforto moral, pôde verificar que os membros da Comissão foram unânimes em lhe manifestar a sua solidariedade. A atitude dos portugueses foi decisiva para Pierre Emmanuel continuar, tendo Lindley Cintra sido chamado a funções no comité internacional. Pierre Emmanuel foi um grande amigo de Portugal, bem como Roselyne Chenu (chegada ao projeto graças à sua proximidade com outro grande poeta José Bergamín), que continua a manter uma relação de grande amizade connosco, participando ativamente na recolha de elementos históricos sobre a iniciativa.