Antonieta Garcia
Aleluia!
Gosto da palavra. Tem consigo a alegria e uma música que desliza, bailarina e sonora, nas vozes que a soltam. Diz louvor e alívios, bem-estar, harmonia.
A luz chegou, dias maiores dão mais vida, a vitória é da primavera. Ouve-se o renascer nos cantos de aves endoidadas, o aroma da macela acalma, as estevas ou cinco chagas abrem-se em festival branco. Ah! e as cerejeiras, as cerejeiras com flores e mais flores glorificam o espaço, deleitam os olhos, profetisas de outras cores e de sabores divinais… Aleluia!
Aleluia, palavra de vogais abertas, ilumina, diz desejos concretizados, vaticina a esperança. Não combina com a tristeza, com o silêncio e trevas. É satisfação, bálsamo, celebração.
Pelas mãos de minha avó presumi, desde menina, o significado de Aleluia, palavra de sonoridade tão estranha quanto melódica. Se havia qualquer atraso, na realização de uma tarefa, o acolhimento da finalização era dito em “Aleluia!” Às vezes, acompanhava-se de sermão ligeiro, censura leve, que a palavra não pactuava com borrasca ou zanga a valer.
Mas era a Aleluia ouvida na Igreja e nas canções que a repetiam com prazer, em tempo de festa, que preferia.
Minha avó levava-me a todas as cerimónias religiosas: procissões, bênção dos ramos, da água… Na semana santa, o programa começava quarta-feira: as matracas no cortejo noturno assustavam a valer e a minha avó explicava: é para lembrar o sofrimento de Jesus, os males que lhe fizeram!
Na quinta-feira, temia e admirava o Ecce Homo, o “Senhor da Cana Verde”, com a coroa de espinhos, flagelado, coberto com um manto vermelho, e tendo na mão uma “cana verde”, símbolo do cetro devido a um rei. A narrativa aterrava pela injustiça. Pilatos desresponsabilizou-se, lavou as mãos, e deixou aos outros o julgamento. O povo escolheu salvar Barrabás, o assassino. Os soldados malvados troçavam e diziam à vista de Jesus: “Salve, rei dos judeus!” Depois crucificaram-no. E… e… e… Era uma história angustiante, tormentosa, que ouvi, arrepiada, repetir anos a fio. A minha avó, em termos religiosos, não deixava os seus créditos por mãos alheias. Durante a procissão visitavam-se sete ermidas, cada uma com seu patrono. No Fundão sempre contei seis, mas diz-se sete, é assim, não valia a pena discutir. O percurso começava na capela da Misericórdia, seguia para Santo António, Senhora da Conceição, São Francisco, Espírito Santo e finalizava na ermida do Calvário. Há mais mas ficam fora de mão. Se incluirmos a Igreja… são sete, pronto. No final, discutia-se muito sobre a mais linda, o bom gosto do quadro vivo da capela tal ou tal, e o daquela outra que não valia nada, via-se mesmo quem a tinha arranjado…
Solene, de amedrontar, aos seis, sete anos, era o Enterro do Senhor, à sexta-feira. Luzes apagadas, de rua em rua, muitas velas em fila indiana, anjinhos, o esquife, as três Marias, que nunca chegaram a apóstolas, mas mereciam ser, … e eu encolhidita, a seguir sensatamente os passos, e a responder, em tempo oportuno, num latinorum ad hoc igualzinho ao que outros mais velhos usavam. De Latim sabiam tanto quanto eu, e interessava era usar aquelas palavras que haviam de ser divinas para terem lugar na celebração mais triste que conhecia. Depois, via-se bem na missa, a língua sagrada não é para entender. Aprendia-se a sonoridade e repetia-se. As cerimónias do tempo da Quaresma eram longas, longas, mas a narração da história bíblica era arrebatadora, na versão da minha avó.
Quando chegava o sábado, era uma alegria! Aleluia, já é festa! O repicar dos sinos, em hino sagrado, anunciava a ressurreição. Lá estava a Aleluia!
De manhãzinha, saíamos levando a jarra mais bonita, cheia de água da fonte para ser benzida. Não se dispensava a água benta, ao longo do ano, tantas eram as pessoas com quem nos cruzávamos a caminho da igreja, cada uma com a sua jarrinha. Protegia, afastava o mal, diziam…
A casa primorosamente limpa, recebia, no domingo, o Senhor. Cheirosa habitava-se de vestidos de festa estreados no dia que pertencia. Mesa com amêndoas, folares e mimos afins celebrava a alegria. Aleluia!
Quando o sacerdote saía, das janelas ou das varandas, lançavam-se moedas aos gaiatos que, na rua, se esfalfavam por arrecadar o maior número possível; para serem muitas, deitavam-se as de menor valor; pelo meio, mostrava-se uma moeda branca, mais valiosa e a luta, lá em baixo, ganhava vigor. Não era bonito, nem humanamente adequado tal espetáculo… Em determinada altura, começou a magoar… Acabou, há anos. Aleluia!
Nos dias que correm, a celebração da Primavera, da Páscoa, continua com direito a Aleluia! Mesmo se as boas notícias emigraram, se continuamos de bolsos vazios e perdidos num labirinto, sem acharmos saída satisfatória… Por cá, andam apaniguados de Pilatos que se desobrigam, lavam as mãos, culpam sempre o vizinho do lado. Quantos crucificarão ainda? Ai, mas este sol, estas flores, as aves, os aromas, os folares, estas festas de coesão comunitária, com maior ou menor dose religiosa, estas… ninguém nos tira!