Carlos Semedo
O Cinema poético de Tarkovsky
Na semana passada, o Cine-Teatro Avenida, recebeu no seu ecrã, uma das cinematografias que mais impacto tem na minha vida. Pode parecer excessivo escrever que filmes mudam alguma coisa na vida de uma pessoa, mas tal como acontece com livros, peças de teatro e outras manifestações artísticas, os filmes (sobretudo os muito bons) têm esse potencial. Um dos patamares mais óbvios é o de sermos colocados perante realidades, narrativas e imagens que desconhecemos ou conhecemos mal, as quais nos facultam uma percepção mais aberta do mundo.
No cinema do realizador russo, creio que se pode falar de um permanente diálogo entre a realidade e o sonho, entre o passado, presente e futuro. Embora eu sinta que o contexto seja quase (no caso de Nostalgia, é a falta desse território, língua, pessoas e em Sacrifício, o referencial é nórdico, mais precisamente a Suécia) sempre as vivências num território concreto – a Rússia – há na forma como Tarkovsky utiliza o meio cinematográfico, um extrapolar permanente para as grandes questões com as quais o Homem se confronta. A vida, a morte, a ética, a moral, a espiritualidade, a tensão entre a ciência e a fé, são campos nos quais as sete longas-metragens se movimentam com uma intensidade rara na história do cinema. Não é por acaso que Ingmar Bergman afirmou que Tarkovsky se movia com facilidade em salas nas quais ele próprio apenas conseguia entreabrir a porta e ter um vislumbre.
Já no Infância de Ivan, seu primeiro filme, depois da formação na escola estatal VGIK, um dos militares quando está perante uma casa destruída, ainda a fumegar, quer acender o seu cigarro, mas não o faz na madeira ainda a arder. Em Andrei Rubliov, os pintores de ícones, circulam por um território permanentemente assolado pela barbárie – Tártaros e questões internas, sobretudo disputas familiares – mas continuam a desenvolver a sua actividade artística. No final, o famoso pintor de ícones e o jovem que acaba de conseguir liderar uma equipa que construiu um majestoso sino, vivem juntos, com emoção, a possibilidade de colaborações futuras (já no Sétimo Selo de Bergman, os que estão fora do cortejo mortal são o casal de saltimbancos). Em Solaris, o papel do Homem na sua relação com a natureza e a forma como somos confrontados com a nossa memória e os dilemas inerentes às decisões tomadas, são dois dos aspectos centrais do filme. No seu filme mais directamente autobiográfico, Espelho, na cena final, temos passado, presente e futuro em diálogo, com a participação da mãe de Andrei Tarkovsky, a avó que conduz os seus netos, através dos campos. Em Stalker, a Zona pode ser vista como o sítio no qual os nossos dilemas mais profundos são expostos. A dada altura, o Stalker pensa em voz alta: a força está na fragilidade e a dureza é morte; o coração que endurece, não pode vencer. Já em Itália, Andrei Tarkovsky, realiza Nostalgia, um filme sobre a o esbater de fronteiras entre a sanidade mental e a falta dela, bem expressa na lucidez da personagem Domenico, quando diz, antes de se imolar: a liberdade não serve de nada, se não somos capazes de nos olharmos olhos nos olhos. Ou quando diz: que espécie de mundo é este, no qual tem de ser um louco a dizer-vos que deviam ter vergonha de vós próprios. Finalmente, em Sacrifício, o “pequeno homem”, no final, segue à risca o princípio enunciado pelo seu pai, no início do filme e rega uma árvore morta, acreditando que se o fizer todos os dias, a mesma poderá ganhar vida.
É, na minha opinião, um cinema que consegue através do meio cinematográfico, aquilo que só a poesia faz através da linguagem. Daí eu considerar que é um dos grandes poetas da história do cinema. É um cinema que nos muda, por dentro.