31 de agosto de 2016

Carlos Semedo
Crónica de leituras de férias

Férias continua a ser sinónimo de aumento do ritmo de leitura. Este ano destaco dois livros.
O primeiro é O Enraizamento – Prelúdio para uma Declaração dos Deveres para com o Ser Humano, de Simone Weil, com tradução de Júlia Ferreira e José Cláudio e edição Relógio d’Água.
Este é um livro que gostaria de ter lido há uns 20 anos atrás. Sinto que algumas coisas na minha vida teriam sido um pouco diferentes. Escrita que me obrigou a leitura lenta e pausada e a muita reflexão, em determinadas passagens. Muitos dos elementos determinantes para o enraizamento do indivíduo são aqui muito bem explicados, a dicotomia ciência religião, a destrinça entre ciência e técnica, a defesa de que foi o racionalismo científico que afastou a França de qualquer possibilidade de manter uma identidade baseada no enraizamento, são alguns dos aspectos fundamentais focados através de um discurso quase sempre tomado pela profunda fé cristã da autora.
Por vezes parece um manual de instruções para a sobrevivência da França, para além da noção de Estado, após a libertação (quando e se acontecer, após a Segunda Grande Guerra), contudo o carácter universal dos problemas que coloca tornam o texto bastante actual e é estimulante para um leitor após quase 75 anos.
Ironia trágica (ou talvez o facto de o texto não ter sido terminado), o final do ensaio pode ser cruzado com o hitleriano Arbeit Macht Frei: “É fácil definir o lugar que o trabalho físico deve ocupar numa vida social bem organizada. Deve ser o seu centro espiritual.” Claro que a concepção de trabalho da autora nada tem que ver com o que se passava nos Campos, mas não deixa de ser uma coincidência arrepiante.
Outro que me acompanhou foi Os Enamoramentos, de Javier Marías, com tradução de Pedro Tamen, edição Alfaguara.
Cheguei a este livro envolvido pela aura do autor (nunca lido até agora) e com uma elevada espectativa sobre esta obra. Antes de fazer alguns comentários, aproveito para referir o prazer que foi lê-lo numa edição de capa dura, pena a gramagem do miolo, muito leve, que o aproxima de algumas Bíblias, mas mesmo assim, um prazer.
De início fui muito bem agarrado pelo autor, o que me levou a ler cerca de 150 páginas de um só fôlego. Era um óptimo presságio que corroborava tudo o que me têm dito sobre Marías. Depois, fui achando que não era assim tão magnífico, contudo há dois aspectos que me tocaram em particular: primeiro, a forma como nos vai arrastando e condicionando através do tratamento das personagens; segundo, pela coragem de olhar a morte sem rede.
É um livro que nos confronta permanentemente com a forma como encaramos o outro e até que ponto a consciência, o pensado, o concretizado, nos molda como seres humanos, a maior parte das vezes de forma irreversível.

31/08/2016
 

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