Antonieta Garcia
Europa e Solidariedade
A Europa é uma velha senhora. Um tanto bipolar, é certo, mas façamos sobressair a aristocracia, a sabedoria, a visão universalista. As experiências vividas construíram uma ética e uma cultura invejáveis, apesar da enorme demência patente em séculos de lutas. Fiquemo-nos pela primeira metade do século XX; as duas Guerras Mundiais desmantelaram muitas crenças; foi descomunal o número de mortes, de vítimas, duras ditaduras obrigaram muitos povos a anos de sujeição… Porém, mesmo em períodos em que pontificava o horror, sempre sobreviveram cultores de justiça e dignidade humanas que alvitravam a construção de um mundo de igualdade, liberdade e fraternidade... A Europa, muitas vezes perdeu forças, aspirações, tolerou que os sonhos decaíssem, mas vimo-la erguer-se senhora de honras, brios e berço da civilização ocidental.
Um dos seus encantos reside na capacidade/prazer de entrelaçar tempos e textos. A construção de uma identidade europeia abraça leituras diversas do mundo, heterodoxias em convívio, mas conhece os Direitos Humanos como pauta essencial de Ser.
A memória, dissemo-lo, guarda momentos de lutas, perseguições, de ilusões tresmalhadas… Quando o silêncio de Deus, ou o que como tal é nomeado, se projeta no silêncio dos homens, confunde-se, extingue-se o sentimento de culpabilidade. No reinado da banalidade do mal, como qualificou Hannah Arendt, emergem criações de ódio e de muita indiferença; o comportamento fundamentalista redunda em vivências trágicas, origina absurdos… enquanto se espera Godot.
A Europa é atualmente, ainda farol de esperança. As imagens de decapitações, de batalhas enfurecidas, em nome da Transcendência, o sofrimento indizível de refugiados, que arriscam tudo por nada terem a perder, afrontam, enxovalham, são obscenamente desumanos…
Qual a resposta? Muros de arame farpado? Que demónios paralisam a solidariedade? Quantas vítimas são necessárias para atuar? Que é da Europa da integração?
Um poema de Martin Niemöller, símbolo da resistência ao nazismo, explica: Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu./ Como não sou judeu, não me incomodei. // No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho que era comunista./ Como não sou comunista, não me incomodei.// No terceiro dia vieram e levaram o meu vizinho católico./ Como não sou católico, não me incomodei.// No quarto dia, vieram e levaram-me;/ já não havia mais ninguém para reclamar...
E nós? Elegemos também a apatia e fechamos os olhos? A tragédia não é connosco? Pobre gente, pobres crianças – tão frágeis, tão assustadas… - em Via Dolorosa longuíssima…
E cá dentro? Sabemos que a União Europeia traçou um projeto de desenvolvimento económico e político para tornar mais forte ser cidadão nacional e europeu. O plano apontava para a partilha de valores, para a criação da coesão moral e social, da harmonia entre os países, para a defesa da liberdade e da democracia, da igualdade, da solidariedade… Belos ideais! A Europa povoada por muitos povos com culturas diferenciadas abriu portas, ofereceu um espaço de mobilidade em liberdade apetecível.
Nada é perfeito. Nas últimas décadas, a demanda da paz e reconciliação, da igualdade entre europeus tem sido eficaz? O que se passa com a Grécia, com Portugal, Irlanda, Espanha…é hipocrisia doentia. E nem vamos lembrar a triste e má figura de quem alimenta epítetos iniciados com a sigla PIGS… Mais genericamente que dizer sobre a democracia, considerando as deploráveis intromissões do ministro das finanças alemão e comentários de Merckell, a par dos perpetrados por um holandês com um nome impronunciável?
Impuseram austeridade, agudizaram a crise, a miséria social voltou e cresceu, as desigualdades são gritantes, querem os povos sob tutela, impedidos de tomar opções, privados do direito de decidir sobre os seus orçamentos, apesar do reconhecimento dos efeitos de políticas suicidárias… Que se pretende? Salvar a cara da Troika - que a União Europeia integra, através da Comissão - e de apaniguados? De muito cinismo se faz a política dos patrões de países e do dinheiro, que sangram povos até ao tutano.
Elegemos, desde 1979, deputados que representam diferentes países. E todavia, o referendo sobre o Brexit apesar de muitas mercês concedidas, está de pé e de boa saúde; já a Grécia reestrutura a dívida, Portugal adoece com os juros que absorvem qualquer cêntimo que pudesse remanescer, a Espanha não encontra saída airosa depois dos últimos resultados eleitorais, presumivelmente, na Irlanda coisas não correm de forma muito diferente… Registamos aspetos negativos por nos termos enamorado da Europa, ambicionarmos mais e não querermos frustrar novas expectativas?
Pior, porém é a tal Europa, humanista e velha senhora, que adia uma política de apoio aos refugiados, não se trata e endoida… Que é da apregoada solidariedade europeia? Quem sabe não são Portugal e Grécia, países a braços com problemas maiores, que irão emprestar sentido à palavra, tão maltratada, tão flagelada, tão anorética… que faz dó.
Às vezes, parece que poetas, filósofos e políticos sonhadores, salvo raras e honrosas exceções, adormeceram. Ai de nós, quando expulsamos o sonho, abafamos o pensamento, ensandecidos por ortodoxias destruidoras de qualquer diálogo.