Elsa Ligeiro
CRÓNICAS DE ALCAINS - ARTE CONTEMPORÂNEA
A Arte Contemporânea, como a Teologia e a Economia, só para citar dois exemplos, são assuntos demasiado importantes para os confiarmos nas mãos dos especialistas.
Foi Schopenhauer quem escreveu que os talentos de primeira ordem jamais serão especialistas, mas em pleno século XXI investe-se na especialização como um bem incontestável, dividindo o saber em grupos fechados sobre si que mais parecem clubes privados de acesso reservado.
Da Arte Contemporânea, a mais próxima de todos nós, afastamo-nos com a desculpa que não se entende. Na linguagem do novo poucos se dão ao trabalho de aprender o alfabeto da contemporaneidade, a não ser os que por vocação ou necessidade de emprego aspiram ao estatuto de especialista.
Vem esta reflexão a propósito da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra que visitei com entusiasmo e que decorre até dia 30 de dezembro em vários pontos da cidade.
Nomes e obras muito estimulantes como as de Julião Sarmento, Fernanda Fragateiro, Salomé Lamas, Rubens Mano ou William Kentridge, entre muitos outros, obrigam-nos a questionar de olhos bem abertos o nosso tempo comum.
Mas permitam-me um destaque: na Sala da Cidade de Coimbra, no antigo refeitório de Santa Cruz, há uma instalação de Paloma Bosquê, uma brasileira, nascida em 1982, a viver e trabalhar em São Paulo; e cuja obra Campo, convocou-me a atenção ao ponto do deslumbramento.
Ao entrar na sala e sem qualquer referência da obra (as indicações estavam na parede detrás das duas enormes cortinas que caiem do tecto e que quase tocam o chão, que a autora forrou com 40 placas uniformes de cera da abelha), eu senti uma proximidade sem explicação racional.
Talvez a cor das cortinas muito próxima do pergaminho apontasse à minha paixão livresca, mas ao aproximar-me foi a textura que me fez avançar o rosto e quase tocar a obra, provando o odor que não me deixou dúvidas: as cortinas gigantescas eram feitas de tripas de vaca, cerzidas na vertical, que me convocaram a uma infância em Alcains, onde por estes meses, eu visitava o estabelecimento da Ti Traitas, em pleno Largo do Santo António, na compra do material que assegurasse uma matação sem falhas.
A mercearia da Ti Traitas era um lugar amplo, com um balcão gigantesco de um castanho polido pelo tempo e pelo uso; um espaço de grandes odores a especiarias, onde os cominhos e o colorau eram reis; e as tripas secas de vaca, nos meses de dezembro e janeiro, uma presença permanente em cima do balcão, com o fio cru das baraças, cortado já em medida certa e apresentadas em trança, prontas para atar as tripas depois de enchidas e já transformadas em morcelas, farinheiras ou chouriças.
Realizar a tarefa do recado bem encomendado pela mãe era entrar no mundo dos adultos, uma iniciação à vida no trabalho.
Foi uma das primeiras tarefas que desempenhei com prazer, no início dos anos 70, como uma louvável contribuição ao trabalho da Casa que em dezembro se construía em redor da matança do porco e da fritura das filhós em amplas caldeiras ao lume; no que era também a Anunciação do Natal.
E o extraordinário é que Paloma Bosquê, do outro lado do Atlântico, algumas décadas depois, imaginou um Campo (2012-2017) com chão em cera de abelhas e cortinas de tripas de vaca ou boi. Partilhando com arte o nosso Tempo Comum.